O Quarto do Menino

"No meu quarto que eu lia, escrevia, desenhava, pintava, imaginava mil projetos, criava outros mil objetos... Por isso, recebi o apelido de 'Menino do Quarto', título que adotei como pseudônimo e hoje, compartilho neste 'Quarto Virtual do Menino', o que normalmente ainda é gerado em meu próprio quarto". Bem, esse início já é passado; o 'menino' se casou (set/2008); há agora dois quartos, o do casal e o da bagunça... Assim, diretamente do quarto da bagunça, entrem e fiquem a vontade! Sobre a imagem de fundo: A primeira é uma reprodução do quadro "O Quarto" de Vicent Van Gogh; a segunda, é uma releitura que encontrei no site http://www.computerarts.com.br/index.php?cat_id=369. Esta longe de ser o MEU quarto da bagunça, mas em 2007, há um post em que cito o quadro de Van Gogh. Como disse, nada mais propício!!!... Passaram-se mais alguns anos, e o quarto da bagunça, já não é mais da bagunça... é o Quarto do Lorenzo, nosso primogênito, que nasceu em dezembro de 2010!

quinta-feira, março 19, 2020

A casinha de Ana


       
         Minhas singelas lembranças a esta senhora seguem nessas linhas mal traçadas, mas com uma vontade enorme de deixar registrado todo o sentimento que fluiu desta pequena convivência.
         Eu escrevi, algumas semanas depois do acidente, no meu diário:
       "Minha vizinha, a dona Ana, faleceu na sexta, depois de ser atropelada na pista, na terça. Foi muito duro receber essa noticia ao pensar em sua vida solitária, a recente perda do marido, a casinha que ela queria ver arrumada, agora abandonada... Passou muita coisa pela minha cabeça, que me fez chorar até meus olhos ficarem vermelhos. Como a morte é difícil de encarar em certos momentos (...) a d. Ana, tão saudável, uma vida para viver, ir assim, tão tragicamente, por uma bobeira, uma fatalidade (...) Não me lembro a última vez que a vi. Isso é o mais difícil de encarar, não me lembro a última vez e tenho que me conformar que nunca mais a verei”.
        Este que escreve, tentando passar o essencial da vida dela, como já disse, é um mero vizinho. Falarei de minhas percepções, os meus sentimentos, tudo o que observei e absorvi.
         D. Ana tinha 63 anos.
        Como escrevei no diário, havia ficado viúva há menos de dois anos. Tinha três filhos, o homem casado, uma filha também casada, que residiam em São Paulo. A caçula era solteira e também residia em São Paulo.
        D. Ana era um exemplo de força e vontade e, apesar de todos os seus pesares (que não eram poucos) vivia a sua vida. Com a morte do marido decidiu que compraria uma casa e moraria só! Não atrapalharia a vida dos filhos. E muito menos cogitou a possibilidade de ir para um asilo. Assim a casa que comprou foi exatamente a que fica ao lado da minha.
       Consigo trouxe o carro e o cachorro do marido. Nunca os deixaria para trás, as paixões do marido, que tinha um zelo completo pelo carro e tinha o cachorro como um companheiro inseparável. Acompanhava-o até no copinho de cerveja, dizia ela, “tomando” alguns golos. Dizia também que o cachorro sorria. E olhando para ele (confesso que não gostava muito dele, essa história de beber cerveja e sorrir, fora que seu aspecto era de um animal feroz), eu até desviava o olhar quando via na “face” do cachorro, algo parecido com um sorriso. D. Ana passeava com o cachorro nas tardes de calor e toda semana dava uma volta com o carro para não prejudicá-lo.
      Esta senhora tinha corpo e feições frágeis, falava manso, bem baixinho. Sempre pensava duas vezes antes de nos “incomodar” com seus problemas caseiros.
          “Coitada!” – quantas vezes não pensei.
         Seu sonho era ver a casa arrumada. Pintura, telhado, piso, jardim, tudo reformado. Aos poucos tudo caminhava conforme seu desejo. Uma vez, depois de uma tempestade, ela chamou o meu pai, perguntando se ele não poderia ver se havia alguma telha quebrada, pois no meio da forte chuva a água tomou conta de um dos quartos. Na hora da tempestade, chorando, tentou puxar o colchão pesado todo molhado, mas como era frágil teve que fazer muito esforço e o desespero tomou-lhe conta.
            Outro dia, chamou minha mãe dizendo que havia um gato por cima da laje da casa, que pediu para meu pai tira-lo de lá, pois passou a noite inteira miando sem deixar-lhe dormir. Meu irmão foi junto com meu pai, procuraram aqui e ali, e nada de gato.
            “Mas eu não estou louca. Ouvi este gato!”
            Bem mais tarde o gato realmente apareceu.
            A cada favor, voltava com as mãos cheias de gentilezas para meu pai e minha mãe.
            D. Ana era boleira. Não fazia apenas bolos, mas sim verdadeiras obras de artes. Esta arte poucos dominam e ela fazia com gosto. Temos registrados uma dessas artes em casa, as fotos da festinha de 16 anos da minha irmã. Foi ela quem fez o bolo decorado com flores.
       Várias tardes veio chamar minha mãe e minha irmã, duas vezes eu atendi: ”Sua mãe ou irmã não estão, é que comecei a fazer um bolo e elas queriam ver eu fazendo?”
        Uma vez tive que chamar minha mãe em sua casa. Receoso por causa do cachorro, não queria entrar sozinho. Mas ninguém me atendia, então abri o portão e entrei assim mesmo. Ele me olhou (ainda bem que não sorriu) e esta foi a única vez que entrei na casa de D. Ana, ainda assim até a garagem.
       Era começo de março, aproximava-se então o aniversario de minha mãe. Minha irmã queria fazer de qualquer forma uma festa surpresa para ela. Pediu emprestado uma daquelas tábuas de bolo para D. Ana. Fez o bolo na casa de uma prima, convidou varias pessoas, até D. Ana, mas ela disse que ia viajar para São Paulo. No dia da festa, minha irmã tirou minha mãe de casa por alguns minutos, os convidados chegaram e foi feita a surpresa. Minha mãe chegou até a conversar com D. Ana antes dela viajar para a casa dos filhos.
       Na terça, em que chegara de volta a nossa cidade, não foi até a rodoviária, onde pegaria um táxi e voltaria para casa conforme sugerira a filha, que deu até o dinheiro para pagar a viagem do táxi.
        D. Ana achou melhor descer antes, pois realmente fica mais próximo de nosso bairro descer onde ela desceu, não fosse o fato de ser uma pista rodoviária. Foi então que, ao atravessar – a fatalidade – um carro a atropelou. Disseram que ela falou o nome, de onde vinha, o endereço, tudo. No hospital, quem a viu, não a reconheceu (acho desnecessário os pormenores desse episodio), basta dizer que os óculos que usava machucou o seu rosto, além de ter inchado muito.
       Precisava de sangue, muito sangue. Meu pai como é doador há muito tempo se ofereceu. Era a minha vez de fazer alguma coisa pela D. Ana. Primeiro que já existia a minha vontade de ser voluntário em doações, agora havia alguém precisando. Eu iria doar.
         Mas no dia seguinte, ao chegar a noite da escola, havia um grupinho em frente à casa dela.
           - Filho, a D. Ana morreu!
           Eu não disse nada. Olhei para a casinha dela, fechada. Um profundo silêncio. Nunca uma casa pareceu tão inanimada. O cachorro, coitado -  triste -, desta vez parecia chorar.
Entrei e chorei, como há muito não fazia por certos falecimentos. Como eu escrevi no meu diário, passou muita coisa pela minha cabeça, toda a história dela, a batalha, a solidão, meu Deus!
          E desde então a D. Ana nunca mais saiu de minha mente. Ao passar em frente a sua casa, sem carro, sem cachorro, sem estar do jeito que ela queria que ficasse. Apenas as rosas vermelhas pareciam intactas, lindas como todo o jardim. Mas a casa vazia.
        - Tenho que escrever sobre ela!
      Emocionei-me só de pensar como escrever sua história, como ficaria no papel. Até agora contei tudo resumidamente. O final seria feliz, como imaginei, ainda captando coisas que faziam parte de sua história.
       Isso tudo porque meu relacionamento com D. Ana se resumia a simples cumprimentos, oi, bom dia!, olá, mas o carisma que havia criado com meus pais, me fez torcer por ela, para que sua vida fosse feliz. Deve ser por isso que sua morte me marcou tanto.
     A esperança que existe, vem de uma poesia criada em torno da vida além do que entendemos quando ela se acaba. Numa conversa entre minha mãe e as filhas de D. Ana, elas confessaram acreditar que ela está em paz aonde quer que esteja ao lado do marido, que ela não conformava ter perdido.
       No cemitério, seu túmulo ficava num lugar tranqüilo, debaixo de uma árvore. Que D. Ana esteja realmente bem, aonde quer que esteja. E mesmo que continua sendo difícil saber que nunca mais a verei (aqui!), resta a esperança de que a verei num outro lugar. Dela, deixo comigo o aprendizado que todos os sonhos devem ser perseguidos e batalhados, mesmo que demore ou não sejam concluídos, mas que deixam as marcas e o exemplo para alguém ganhar força e entusiasmo, e tentar concluir e realizar seus sonhos.
     Obrigado por tudo D. Ana, sua história é mais que um simples fato, observado e captado por um simples vizinho. Deixo registrado o meu grande aprendizado e a esperança de que outros que não a conheceram pessoalmente, possam aprender algo também...

Escrita originalmente em 03/01/2000.

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