O Quarto do Menino

"No meu quarto que eu lia, escrevia, desenhava, pintava, imaginava mil projetos, criava outros mil objetos... Por isso, recebi o apelido de 'Menino do Quarto', título que adotei como pseudônimo e hoje, compartilho neste 'Quarto Virtual do Menino', o que normalmente ainda é gerado em meu próprio quarto". Bem, esse início já é passado; o 'menino' se casou (set/2008); há agora dois quartos, o do casal e o da bagunça... Assim, diretamente do quarto da bagunça, entrem e fiquem a vontade! Sobre a imagem de fundo: A primeira é uma reprodução do quadro "O Quarto" de Vicent Van Gogh; a segunda, é uma releitura que encontrei no site http://www.computerarts.com.br/index.php?cat_id=369. Esta longe de ser o MEU quarto da bagunça, mas em 2007, há um post em que cito o quadro de Van Gogh. Como disse, nada mais propício!!!... Passaram-se mais alguns anos, e o quarto da bagunça, já não é mais da bagunça... é o Quarto do Lorenzo, nosso primogênito, que nasceu em dezembro de 2010!

segunda-feira, janeiro 03, 2022

AS CRIANÇAS E AS ARMAS

 A vida e suas contradições. A vida é contraditória por si só: existir é um contrassenso. É O PRÓPRIO CONTRASSENSO! Gostaria eu de escrever sempre, minhas impressões diárias sobre os acontecimentos pessoais, acerca dos acontecimentos e circunstâncias em geral. Entretanto, a manutenção da vida demanda tarefas e essas tarefas cansam, e então não sobra ânimo para escrever. Aliás, uma constatação e uma "verdade" que me persegue: a manutenção da vida é cara e cansativa!

Já fiz muito isso: escrever, escrever, escrever... - diários, rascunhos, folhas soltas, o blog, mesmo alguns trabalhos acadêmicos em que pude ser mais autor que meramente um seguidor de técnicas e burocracias academicistas - e quando releio o que escrevi naqueles tempos, também são contraditórios os sentimentos: "que bom que escrevi!", "que idiota que eu era por pensar assim!", "o importante é que você registrou", "mas agora você não está registrando que não pensa nem age mais assim...". Existir é confuso!

E digo mais: em tempos de redes sociais, o visual é mais atrativo: fotos, fotos, fotos... Os vídeos - curtos de preferência, fazem muito sucesso. Tiktokers! Se usar palavras, use poucas, pouquíssimas, do contrário, ninguém lerá os textos "enormes" que escreve. Minha esposa disse: "entretanto, se parar de escrever, estará colaborando com a extinção dos leitores de textos 'maiores'".

Cecília Meireles escreveu: "dizei-me com poucas palavras" e já escrevi um texto aqui no blog usando esse poema como referência - com muitas palavras - pois é sim, admirável o poder de síntese de alguns autores, escritores, poetas, todavia, não consigo escrever com poucas palavras. Toda essa introdução para escrever sobre o encontro com um texto de Umberto Eco e releituras de Cecília Meireles acerca dos temas: guerra, paz, desarmamento e, claro que todas essas questões envolvem outras maiores e mais filosóficas.

Ler Umberto Eco é um grande desafio para mim. "O cemitério de praga", que ganhei de presente no Natal de 2018 da Paula foi o primeiro romance dele que li. Eu já tinha na minha prateleira o livro "A estranha chama da Rainha Loana", comprado em 2008 e que li no início da pandemia (abril de 2020, para ser mais exato). Pois bem, em dezembro último, no sebo, comprei mais dois livros dele: "O pêndulo de Foucault" e "Diário Mínimo".

"Diário Mínimo" é a reunião de textos que o autor escreveu para jornais e reuniu no livro, pelo que entendi. Como eu disse, um desafio ler Umberto Eco, um erudito. Entretanto, com um tanto de esforço, acredito até que chego perto de uma compreensão de alguns desses textos e como é impressionante a repetição a que está fadada a humanidade. "Repetição" no sentido de que os "problemas", "alertas", "questionamentos" levantados e abordados por Eco na década de 1960, passadas mais seis décadas, quase nada mudou: somos previsíveis, repetitivos, imbecis.



A constatação dessa "anomalia" humana por essas mentes brilhantes e, lida por pessoas curiosas e questionadoras como eu é um misto de revolta com passividade. Uma passividade entreguista: não adianta ser revolucionário, a idiotice irá prevalecer de novo e novamente e outra vez na face desta terra. O Brasil que elegeu uma aberração em 2018 é uma prova evidente de como a imbecilidade está impregnada nas mais diversas áreas. Como foi e é danosa, perniciosa, mortífera a "babaquice" levada ao extremo. Não se administra um país "brincando" de ser presidente. Enfim, não vou desviar o foco para questões políticas...

Quero me deter num dos textos do Umberto - não li o livro todo ainda, intitulado "Carta ao meu filho", escrito em 1964. O impressionante desse texto é que chegou até mim logo depois de trechos escritos por Cecília, versando sobre o mesmo tema, os quais eu já tinha tido contato em anos anteriores. Gostaria de poder reproduzir o texto completo do Eco para aqueles que estão me lendo agora pudessem contribuir com o debate. Vou tentar digitalizar as páginas...

O texto começa assim:

"Querido Stefano,

aproxima-se o Natal e as lojas do centro logo estarão lotadas de pais excitadíssimos que representarão a comédia da generosidade anual - aqueles pais que com alegria hipócrita aguardaram o momento em que poderão comprar para si próprios, contrabandeando-os para os filhos, seus trenzinhos preferidos, os teatrinhos de fantoches, os tiros ao alvo com flechas e os pingues-pongues domésticos"

Segue o autor dizendo que ainda não chegou a sua vez, pois Stefano ainda é pequeno, entretanto, mais quatros anos:

"E então, Stefano... Então te darei espingardas. De dois canos. De repetição. Fuzis-metralhadoras. Canhões. Bazucas. Sabres. Exércitos de soldadinhos em formação de combate. Castelos com pontes levadiças. Fortins a assediar. Casamatas, paióis, couraçados, reatores. Metralhadoras, punhais, revólveres."

E Eco segue com uma lista de objetos e artifícios bélicos que nunca ouvi falar. É óbvio que há uma explicação do próprio autor para presentear o filho Stefano e mais, incentivá-lo a brincar com armas e guerra. Antes, porém, quero ir ao outro texto, a crônica "Natal" de Cecília, escrita em 23 de dezembro de 1931, no Diário de Notícias.


"Nestes três dias a população carioca - assim como a de uma boa parte do mundo - vai agitar-se pelas lojas de brinquedos à procura de mimos para os sapatinhos das crianças. Não quero entrar em considerações sobre as conveniências e inconveniências com que se costuma cerca o Natal das crianças. Mas gostaria de intervir seriamente na escolha dos brinquedos, chamando a atenção dos adultos para o abuso que se costuma fazer de apetrechos militares como presente de boas festas e estímulo das mais graves tendências infantis."

A autora continua: "Na noite de Natal, as mãezinhas põem nos sapatinhos dos filhos espingardas e baionetas, quepes e tambores, cornetas e soldadinhos de chumbo... Fazem-no inocentemente, pensando que dão felicidade às crianças. Ensinar a brincar com armas é a mais dolorosa ocupação a que se podem entregar as mães".

A crônica vai terminando e tem uma frase em especial que é para mim impressionante: "Se fosse possível não ensinar a matar, - uma vez que para morrer todos nascemos já ensinados...".

Viram a que contradição cheguei com a leitura de Eco? Que me levou a reler esta crônica e outras de Cecília. Em "Crônicas de Educação", especialmente no volume 4, no décimo quarto núcleo temático: "Paz, desarmamento e não-violência" têm 31 crônicas. Reli 15. Faltam 16.



Vou reproduzir aqui o último parágrafo do texto de Umberto Eco, que é uma síntese de seu pensamento sobre as crianças brincarem de guerra, usando as armas de brinquedos, todavia, como eu escrevi anteriormente, é um texto que vale ser lido na íntegra, pois há tantas outras referências e argumentos preciosos:

"Portanto, querido Stefano, eu te presentearei fuzis. E te ensinarei a brincar de guerras muito complexas, nas quais a verdade nunca esteja de um só lado, nas quais, conforme o caso, seja preciso organizar dias 8 de setembro. Irás desafogar-te, nos teus anos jovens, confundirás um pouco tuas ideias, mas lentamente te nascerão convicções. Depois, adulto, acreditarás que foi tudo uma fábula, chapeuzinho vermelho, cinderela, os fuzis, os canhões, o homem contra o homem, a bruxa contra os sete anões, os exércitos contra os exércitos. Mas, se por acaso, quando fores grande, ainda te surgirem as monstruosas figuras dos teus sonhos infantis, as bruxas, os duendes, as armas, as bombas, os recrutamentos obrigatórios, talvez já tenhas adquirido uma consciência crítica em relação às fábulas e aprendido a mover-te criticamente dentro da realidade" (p. 115)

Na crônica "Desarmamento", Cecília escreve:

"Suprimir as armas é difícil. Mas, ainda quando fosse fácil, não seria bastante. As armas são apenas o instrumento inventado para o serviço de um intuito. É o intuito, portanto, que se precisa suprimir. É o espírito que se precisa desarmar, antes da mão. Por isso mesmo, todos os educadores se têm voltado para a escola e para a criança com a mais firme esperança de começarem por aí a obra de pacifismo universal" (p. 238).

Vou repetir: "É o espírito que se precisa desarmar, antes da mão"! E, para mim, o texto de Eco, faz sentido e não é contraditório com o movimento pela paz. Enquanto existir pessoas com espíritos beligerantes e com acesso às armas, as guerras não cessarão e sofrerão terrivelmente os espíritos pacíficos e pacifistas.

Eu ficarei imensamente feliz se o meu texto produzir em você, leitora e leitor, algum aprendizado, provocar outras questões e puder compartilhar comigo.