Minhas
singelas lembranças a esta senhora seguem nessas linhas mal traçadas, mas com
uma vontade enorme de deixar registrado todo o sentimento que fluiu desta
pequena convivência.
Eu escrevi, algumas semanas depois
do acidente, no meu diário:
"Minha vizinha, a dona Ana, faleceu
na sexta, depois de ser atropelada na pista, na terça. Foi muito duro receber
essa noticia ao pensar em sua vida solitária, a recente perda do marido, a
casinha que ela queria ver arrumada, agora abandonada... Passou muita coisa
pela minha cabeça, que me fez chorar até meus olhos ficarem vermelhos. Como a
morte é difícil de encarar em certos momentos (...) a d. Ana, tão saudável, uma
vida para viver, ir assim, tão tragicamente, por uma bobeira, uma fatalidade
(...) Não me lembro a última vez que a vi. Isso é o mais difícil de encarar, não me lembro a última vez e tenho que me conformar que nunca mais a verei”.
Este que escreve, tentando passar o
essencial da vida dela, como já disse, é um mero vizinho. Falarei de minhas
percepções, os meus sentimentos, tudo o que observei e absorvi.
D. Ana tinha 63 anos.
Como escrevei no diário, havia
ficado viúva há menos de dois anos. Tinha três filhos, o homem casado, uma
filha também casada, que residiam em São Paulo. A caçula era solteira e também
residia em São Paulo.
D.
Ana era um exemplo de força e vontade e, apesar de todos os seus pesares (que
não eram poucos) vivia a sua vida. Com a morte do marido decidiu que compraria
uma casa e moraria só! Não atrapalharia a vida dos filhos. E muito menos
cogitou a possibilidade de ir para um asilo. Assim a casa que comprou foi
exatamente a que fica ao lado da minha.
Consigo trouxe o carro e o cachorro
do marido. Nunca os deixaria para trás, as paixões do marido, que tinha um zelo
completo pelo carro e tinha o cachorro como um companheiro inseparável.
Acompanhava-o até no copinho de cerveja, dizia ela, “tomando” alguns golos.
Dizia também que o cachorro sorria. E olhando para ele (confesso que não
gostava muito dele, essa história de beber cerveja e sorrir, fora que seu
aspecto era de um animal feroz), eu até desviava o olhar quando via na “face”
do cachorro, algo parecido com um sorriso. D. Ana passeava com o cachorro nas
tardes de calor e toda semana dava uma volta com o carro para não prejudicá-lo.
Esta senhora tinha corpo e feições
frágeis, falava manso, bem baixinho. Sempre pensava duas vezes antes de nos
“incomodar” com seus problemas caseiros.
“Coitada!” – quantas vezes não
pensei.
Seu sonho era ver a casa arrumada.
Pintura, telhado, piso, jardim, tudo reformado. Aos poucos tudo caminhava
conforme seu desejo. Uma vez, depois de uma tempestade, ela chamou o meu pai,
perguntando se ele não poderia ver se havia alguma telha quebrada, pois no meio
da forte chuva a água tomou conta de um dos quartos. Na hora da tempestade,
chorando, tentou puxar o colchão pesado todo molhado, mas como era frágil teve
que fazer muito esforço e o desespero tomou-lhe conta.
Outro dia, chamou minha mãe dizendo
que havia um gato por cima da laje da casa, que pediu para meu pai tira-lo de
lá, pois passou a noite inteira miando sem deixar-lhe dormir. Meu irmão foi
junto com meu pai, procuraram aqui e ali, e nada de gato.
“Mas eu não estou louca. Ouvi este
gato!”
Bem mais tarde o gato realmente
apareceu.
A cada favor, voltava com as mãos
cheias de gentilezas para meu pai e minha mãe.
D. Ana era boleira. Não fazia apenas
bolos, mas sim verdadeiras obras de artes. Esta arte poucos dominam e ela fazia
com gosto. Temos registrados uma dessas artes em casa, as fotos da festinha de
16 anos da minha irmã. Foi ela quem fez o bolo decorado com flores.
Várias tardes veio chamar minha mãe
e minha irmã, duas vezes eu atendi: ”Sua mãe ou irmã não estão, é que comecei a
fazer um bolo e elas queriam ver eu fazendo?”
Uma vez tive que chamar minha mãe em
sua casa. Receoso por causa do cachorro, não queria entrar sozinho. Mas ninguém
me atendia, então abri o portão e entrei assim mesmo. Ele me olhou (ainda bem
que não sorriu) e esta foi a única vez que entrei na casa de D. Ana, ainda
assim até a garagem.
Era começo de março, aproximava-se
então o aniversario de minha mãe. Minha irmã queria fazer de qualquer forma uma
festa surpresa para ela. Pediu emprestado uma daquelas tábuas de bolo para D.
Ana. Fez o bolo na casa de uma prima, convidou varias pessoas, até D. Ana, mas
ela disse que ia viajar para São Paulo. No dia da festa, minha irmã tirou minha
mãe de casa por alguns minutos, os convidados chegaram e foi feita a surpresa.
Minha mãe chegou até a conversar com D. Ana antes dela viajar para a casa dos
filhos.
Na terça, em que chegara de volta a
nossa cidade, não foi até a rodoviária, onde pegaria um táxi e voltaria para
casa conforme sugerira a filha, que deu até o dinheiro para pagar a viagem do
táxi.
D. Ana achou melhor descer antes,
pois realmente fica mais próximo de nosso bairro descer onde ela desceu, não
fosse o fato de ser uma pista rodoviária. Foi então que, ao atravessar – a
fatalidade – um carro a atropelou. Disseram que ela falou o nome, de onde
vinha, o endereço, tudo. No hospital, quem a viu, não a reconheceu (acho
desnecessário os pormenores desse episodio), basta dizer que os óculos que
usava machucou o seu rosto, além de ter inchado muito.
Precisava de sangue, muito sangue.
Meu pai como é doador há muito tempo se ofereceu. Era a minha vez de fazer
alguma coisa pela D. Ana. Primeiro que já existia a minha vontade de ser
voluntário em doações, agora havia alguém precisando. Eu iria doar.
Mas no dia seguinte, ao chegar a
noite da escola, havia um grupinho em frente à casa dela.
-
Filho, a D. Ana morreu!
Eu
não disse nada. Olhei para a casinha dela, fechada. Um profundo silêncio. Nunca
uma casa pareceu tão inanimada. O cachorro, coitado - triste -, desta vez parecia chorar.
Entrei
e chorei, como há muito não fazia por certos falecimentos. Como eu escrevi no
meu diário, passou muita coisa pela minha cabeça, toda a história dela, a
batalha, a solidão, meu Deus!
E
desde então a D. Ana nunca mais saiu de minha mente. Ao passar em frente a sua
casa, sem carro, sem cachorro, sem estar do jeito que ela queria que ficasse.
Apenas as rosas vermelhas pareciam intactas, lindas como todo o jardim. Mas a
casa vazia.
-
Tenho que escrever sobre ela!
Emocionei-me
só de pensar como escrever sua história, como ficaria no papel. Até agora
contei tudo resumidamente. O final seria feliz, como imaginei, ainda captando
coisas que faziam parte de sua história.
Isso
tudo porque meu relacionamento com D. Ana se resumia a simples cumprimentos,
oi, bom dia!, olá, mas o carisma que havia criado com meus pais, me fez torcer
por ela, para que sua vida fosse feliz. Deve ser por isso que sua morte me
marcou tanto.
A
esperança que existe, vem de uma poesia criada em torno da vida além do que
entendemos quando ela se acaba. Numa conversa entre minha mãe e as filhas de D.
Ana, elas confessaram acreditar que ela está em paz aonde quer que esteja ao
lado do marido, que ela não conformava ter perdido.
No
cemitério, seu túmulo ficava num lugar tranqüilo, debaixo de uma árvore. Que D.
Ana esteja realmente bem, aonde quer que esteja. E mesmo que continua sendo
difícil saber que nunca mais a verei (aqui!), resta a esperança de que a verei
num outro lugar. Dela, deixo comigo o aprendizado que todos os sonhos devem ser
perseguidos e batalhados, mesmo que demore ou não sejam concluídos, mas que
deixam as marcas e o exemplo para alguém ganhar força e entusiasmo, e tentar
concluir e realizar seus sonhos.
Obrigado
por tudo D. Ana, sua história é mais que um simples fato, observado e captado
por um simples vizinho. Deixo registrado o meu grande aprendizado e a esperança
de que outros que não a conheceram pessoalmente, possam aprender algo também...
Escrita originalmente em 03/01/2000.