Na pandemia, especialmente nos primeiros meses, eu li muito. Muito mesmo! Um dos livros que devorei foi o "Livro do Desassossego", de Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. É um livro que me impressionou bastante, para uma pessoa de alma desassossegada que eu estava desde 2017/2018, vivenciar o horror dos primeiros meses da pandemia, pessoas morrendo, sem poderem respirar, por conta de um ser microscópico, um vírus, sem vacina eficaz à época.
Tudo isso, somado e multiplicado a outros fatores externos e internos, que vão se retroalimentando, um interferindo no outro. Presos (que delícia!) dentro de casa - e fomos "privilegiados" por ficar a pandemia numa "mansão", passei a odiar dias ensolarados, céu azul, nuvens brancas... Os dias nublados e chuvosos combinavam e ainda combinam mais com meu interior.
Dedicarei este texto, em efeito retardado, às minhas impressões ou destaques de trechos do referido livro. Conheço pouco, muito pouco de Fernando Pessoa, porém, este pouco que li - não apenas no livro, mas outras informações sobre sua vida, já me impressionam sobremaneira. Com certeza, Fernando Pessoa, foi um sujeito com muitas sobre-excitabilidades (ler Kazimierz Dabrowski ou estudiosos desse psiquiatra polonês). São cinco: sobre-excitabilidade emocional, imaginativa, intelectual, psicomotora e sensorial.
No caso de Pessoa, claro que são apenas especulações minhas, emocional, imaginativa e intelectual, com certeza, mas a sensorial, com base no que li no diário de Bernardo Soares, é muito evidente. O modo como ele nomeia e descreve sensações, o incômodo de quase todas delas, por isso sobre-excitabilidade, over, over, over...
"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir", é um ótimo exemplo e uma construção com a qual me identifico demais. Escrever é isso: diminuir a febre de sentir. Nos idos de 1999 ou antes, escrevi um "poema" - entre aspas mesmos: "Eu, poeta que não sou" e que contém essa ideia de sofrer a vida e a necessidade de escrever sobre ela.
"A poesia me perturba assim:/ Se vejo o pôr-do-sol, primeiro admiro,/ depois ele me persegue até sobre ele poetar./ Se me pego preso à luz da lua, primeiro me deixo levar,/ depois ela não sai de mim até acalmá-la na ponta da caneta."
"Viver é não pensar" (p. 109). "O coração, se pudesse pensar, pararia" (p. 16). "O mundo é de quem não sente" (p. 257). Nesta última frase, o autor prossegue: "A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade". "Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o Céu" (p. 25). "Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos" (p. 101) - coloquei esta última como epígrafe no meu perfil de whatsapp hoje (25/01/2023).
Tentei no final do ano passado, reler o livro e consegui até um tanto, destacando com marca texto algumas dessas passagens... não consegui reler até o final... Ontem decidi buscar uma passagem específica que fiquei devendo numa interação de comentários do Facebook, com uma ex-aluna querida, a Grazi Pestana. Na postagem, um trecho do Carl Sagan e eu comentei que lembrava uma passagem do "Livro do Desassossego" e, acredito que não fiz o retorno a ela, de que encontraria o trecho e a enviaria.
De tudo o que li na primeira vez, o trecho a seguir, especialmente a imagem que Pessoa descreve, passou a habitar minha alma e coração, imbricada com minha descrença do mundo - tão supérfluo!, de deus, céu, inferno, a parafernália cristã toda - e aqui não é um ataque à fé de ninguém, apenas um reflexo natural de quem esteve pouco mais de 20 anos dentro desse grupo religioso.
"[...] gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido" (Bernardo Soares, "Livro do Desassossego", p. 112). É isso! É exatamente isso que somos.
O início desse parágrafo é impressionante: "Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido".
Fernando Pessoa honrou sua palavra, soube existir para além da vida terrena, por meio da "voz escrita" e, neste livro especialmente descreve imagens intelectuais perfeitas.
Conheci um poema nas redes sociais ano passado, de uma poeta mineira. Busquei informações sobre ela, óbvio... vou tentar resgatar aqui, pois neste momento que escrevo, sei o que quero dizer, mas minha memória está prejudicada... Depois de uma pesquisada no Facebook (postagem minha de 05 de abril de 2022), encontrei o poema e a poeta: "Teologia II", de Orides Fontela (1940-1998):
Associei o poema com essa passagem de Bernardo Soares: "Haja ou não deuses, deles somos servos" (p. 30). Por minha vez, também influenciado pela leitura mais recente (início de 2022), dos livros de Yuval Noah Harari: "Sapiens: uma breve história da humanidade" e "Homo deus: uma breve história do amanhã", escrevi "Haja Deus":
Outras passagens que destaquei entre ontem e hoje, nesse retorno ao "Livro do Desassossego": "[...] O mal da vida, a doença de ser consciente com o meu próprio corpo e perturba-me" (p. 95). A altíssima sensibilidade, como se o corpo fosse uma esponja, uma antena, um imã de sensações e ele tentou controlar a avalanche constante das sensações produzidas de seu contato com a existência. Acredito que por essa hipersensibilidade, a febre de Pessoa era constante.
"[...] Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das códeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes" (p. 69). Tive que procurar "códea" no dicionário, e trago para você minha leitora, meu leitor: "a parte exterior do pão, do queijo, das massas endurecidas pelo cozimento".
Vários exemplos de mal-entendidos com a realidade podem ser levantados aqui: desde a ideia da Terra ser o centro do Universo ou do Sistema Solar, até o problema mortal com a ideia de "deus monoteísta" judaico-mulçumano-cristão. Não bastasse as brigas e disputas "internas", como a briga de Esaú e Jacó, anteriormente, tem Isaque e Ismael, ambos filhos de Abraão - o mais velho (Ismael) com Hagar e, Isaque, com a idosa Sara. E a disputa para quem é o filho legítimo, herdeiro do Deus Poderoso, temos o conflito secular e presente/permanente em pleno século XXI, como a Faixa de Gaza.
Sobre o relato bíblico de Hagar, me ocorre um poema chocante, de Adriane Garcia, poeta mineira, que nos oferece outra perspectiva dessa história: a perspectiva da serva, da própria Hagar.
Lembrei de outros versos de Cecília, do poema "Contemplação", que carrega essa ideia de que o que fazemos tem consequências e sequelas, imediatas e seculares: "Tão poucos somos, - e tanto causamos,/ com tão longos ecos!/ Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos".
O importante aqui é a construção que Pessoa nos presenteia: vivemos baseados em pequenos mal-entendidos e enchemos a boca para dizer "eu sou..., você não é...", sendo que nada, nem ninguém não é, pois tudo é ilusão...
"De repente estou só no mundo. Vejo tudo do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro" (p. 84/85). Que imagem! Telhado espiritual, uau! E faço mil conexões... Albert Camus que escreve: "Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente". Afinal, um Filósofo! Prefere a consciência. Muitas passagens sobre solidão e o sentimento de ser estrangeiro de Cecília Meireles ("Desejo de regresso", logo abaixo). O próprio Camus escreveu "O estrangeiro", que é essa a ideia, estrangeiro de si, do mundo, da vida...
Desejo de regresso
Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.
E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.
Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!
Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira…)
É como me sinto! Estrangeiro! Só no mundo... e, novamente, isso não tem a ver com "nossa, nem sua esposa e filhos te dão sentido de pertencimento?"... Espero que façam uma análise mais profunda do que escrevo, pois é exatamente isso que estou tentando dizer. Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita... Exercício difícil. Se o foi para Pessoa, ele se empenhou tanto, que conseguiu.
Manual Bandeira, no poema "A vida assim nos afeiçoa", na última estrofe, em poucas palavras, ele define a dicotomia de viver (que maravilhoso! que terrível): "A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel" ("Estrela da vida inteira: poesias reunidas", Manual Bandeira, p. 20/21). A vida prende, mesmo que seja um inferno, nos afeiçoamos nas pequenas bolhas de esperanças, que logo estouram... por isso a vida é requintadamente cruel!
Cecília Meireles, na última estrofe de "A flor e o ar" escreve: "Neste destino a que vim,/ tudo é longe, tudo é alheio./ Pulsa o coração no meio/ só para marcar o fim" ("Retrato Natural", Obra Poética, p. 362). Tudo é longe! Tudo é alheio! Hoje eu li, de Cecília também: "Meus olhos andavam mais longe do que nunca,/ voavam, nem fechados nem abertos,/ independentes de mim,/ sem peso algum, na escuridão/ e liam, liam, liam o que jamais esteve escrito/ na rasa solidão do tempo, e sem qualquer esperança,/ - qualquer" (última estrofe do no. "Dois", "Doze noturnos da Holanda", Obra Poética, p. 382).
Hoje pela manhã, levei Benjamin ao HC-UEL para tirar sangue... As veias dele não facilitam o trabalho para a retirada do sangue, ou seja, muitas furadas, sem sucesso e muita dor... e não estou falando só de hoje, que foram duas furadas sem sucesso, sendo a segunda que o fez derramar lágrimas pesadas. E ele não é a criança-comum que berra, esperneia, como num extinto natural de sobrevivência para fugir desse lugar traumático, que causa dor. Como um cordeiro vai para o abatedouro, ele permanece quieto, parado, tenso sim, e quando a dor é terrível, brotam as lágrimas de uma tonelada cada uma, pesadas porém mas silenciosas.
Como disse para a jovem enfermeira (no jaleco estava escrito biomédica) que furou as duas primeiras vezes: desde o primeiro dia de vida, 14/06/2014, ele é furado. Passou pela tentativa de extração do liquor da medula óssea. Eu estava lá e ouvi os berros daquele pequeno bebê que acabara de sair do ventre materno - por conta da toxoplasmose congênita, e até a alta com 2 anos e meio, muitas furadas. A enfermeira Vera resolveu a questão hoje. Apalpou, procurou, sentiu a veia e terceiro furo foi certeiro. Levantei as mãos aos céus: Viva a Vera! Benjamin voltou mais silencioso no trajeto de Uber...
Amo meus filhos e por amá-los tanto, me arrependo de tê-los tirados seja lá onde estavam para virem sofrer nesse inferno que chamamos Terra. Anseio para que ganhem ferramentas emocionais, intelectuais, espirituais - e nunca religiosas, para saberem minimizar as sequelas dos sofrimentos terrenos...
Bem, por enquanto é isso. Felicidade e ser consciente são incompatíveis mesmo, Camus. E para terminar com mais uma ideia de Bernardo Soares, afinal, quem me trouxe para esse texto, na tentativa de diminuir a febre de sentir: "Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez" (p. 154).
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