O Quarto do Menino

"No meu quarto que eu lia, escrevia, desenhava, pintava, imaginava mil projetos, criava outros mil objetos... Por isso, recebi o apelido de 'Menino do Quarto', título que adotei como pseudônimo e hoje, compartilho neste 'Quarto Virtual do Menino', o que normalmente ainda é gerado em meu próprio quarto". Bem, esse início já é passado; o 'menino' se casou (set/2008); há agora dois quartos, o do casal e o da bagunça... Assim, diretamente do quarto da bagunça, entrem e fiquem a vontade! Sobre a imagem de fundo: A primeira é uma reprodução do quadro "O Quarto" de Vicent Van Gogh; a segunda, é uma releitura que encontrei no site http://www.computerarts.com.br/index.php?cat_id=369. Esta longe de ser o MEU quarto da bagunça, mas em 2007, há um post em que cito o quadro de Van Gogh. Como disse, nada mais propício!!!... Passaram-se mais alguns anos, e o quarto da bagunça, já não é mais da bagunça... é o Quarto do Lorenzo, nosso primogênito, que nasceu em dezembro de 2010!

quarta-feira, agosto 26, 2020

TENHO MEDO DO PT

O texto abaixo foi escrito, originalmente em 26/08/2014, ou seja, seis longos anos se passaram. Compartilharei novamente o texto, porém, com alguns excertos destacados em itálico, pois de lá para cá, aprendi muito, mudei, revi conceitos. 

Não tínhamos um idiota na presidência, não tínhamos uma pandemia, não tínhamos uma crise generalizada. Meu primeiro sentimento hoje foi de não compartilhar o texto, afinal, minhas palavras não mudarão nada.

Sou consciente que as minhas palavras não mudarão nada mesmo no exterior; entretanto, elas mudarão o meu interior, não adoecerei por não dizer o que penso, de tentar ao menos, resgatar o debate, o diálogo. Enfim...


"TENHO MEDO DO PT" 

Londrina, 26 de agosto de 2014.

Londrina, 26 de agosto de 2020 (revisto).

Tecerei e compartilharei alguns comentários acerca da política. Para tanto, peço que levem em consideração os seguintes elementos:

1. Não sou cientista político ou economista;

2. Não sou partidário ou filiado a nenhum partido (ainda não, por falta de tempo e desconhecimento, ou por acreditar nesse momento, ser desnecessário);

3. Não sou dono da verdade, nunca! O que escrevo aqui é pessoal e, portanto, tendencioso.

Quando eu era criança, nas eleições para Presidente quando Lula concorreu com Collor, lembro-me como se fosse hoje, as cores vermelho e azul indicavam fortemente os partidos envolvidos. Numa breve pesquisa para esse relato, estou me referindo ao segundo turno das eleições de 1989 – estava com 8 anos de idade.

Num fim de semana, estávamos na casa de conhecidos, localizada no centro da minha cidade natal, em plena avenida principal, cuja área de convivência com janela enorme para a avenida, tínhamos visão privilegiada do movimento de carros. Nós, crianças, fomos direcionados pelos mais velhos a bradar e comemorar quando os carros passavam com bandeiras do Collor e a vaiar e colocar os polegares para baixo quando os carros apoiavam Lula.

Diziam os adultos: “O PT come criancinhas!” e isso me marcou profundamente. Lula não ganhou aquela eleição. Collor sim. Viva! As criancinhas – eu me incluía no grupo – não seríamos devoradas. Na época, não entendia mesmo nada de política e tive dimensão real – se é que tive – da gravidade de algumas ações do então presidente Collor e equipe, por exemplo, o confisco das poupanças, somente alguns anos atrás.

Os pais, avós e outros adultos responsáveis pelas criancinhas que não foram devoradas pelo PT, suicidaram-se ou viram-se em situações caóticas de um dia para outro, visto que suas economias foram “trancadas” por – leio agora na internet, 18 meses.

Passados alguns anos, jovem, em minha primeira eleição como votante, votei em Lula para presidente, um “da Silva”, proletário, sem graduação, torna-se presidente do Brasil, 2002. Nunca mais votei no PT. [Votei no PT novamente em 2018, no segundo turno, em Fernando Haddad. No primeiro turno, votei em Marina Silva. Tinha/tenho minhas reservas em relação ao PT, todavia, não precisava ser um cientista político ou um vidente para saber o desastre que seria o candidato 17 como presidente. Um desastre como presidente, que não participou de debates, venceu por meio de fake news, envolvido em corrupção e outros piores delitos. Desastre exponencial na pandemia, uma ingerência como líder máximo do Poder Executivo, mais de 115 mil mortos pela covid-19; mais de 100 dias sem Ministro da Saúde] Em 2006, quando Lula se reelegeu, votei em Heloísa Helena do PSOL, que recebeu inexpressivos votos, ficando em terceiro lugar.

Em 2010, votei em Marina Silva, pelo Partido Verde; muito influenciado pela história de vida pessoal e política, narrada pela jornalista Marília de Camargo César. Para mim, foi tocante ler o discurso que Marina escreveu para anunciar sua saída do PT, do qual foi fundadora e sua filiação ao PV, por uma série de motivos elencados lá e outros, talvez, que só Marina os sabe de fato, não explicitados por vários interesses envolvidos, sobre os quais manipuladores e criativos politiqueiros puderam e podem especular até hoje.

Passados tantos outros acontecimentos, Marina Silva desfilia-se do PV e começa o movimento de criação da REDE. E mais uma vez, pessoalmente, vejo muita coerência nas argumentações e motivos para tanto. Algo novo, um partido novo, para uma política nova. E isso é entendido como muito negativo para muitos analistas políticos, uma figura política com grande expressão (quase 20 milhões de votos em 2010), migrar tanto de partido e inventar movimentos – como o da REDE. Inovador até no nome, enquanto partido. Não começa com “P”. Mas os “Democratas” já tinham iniciado a moda – pelo menos mudando de nome, não o velho modo de fazer política. Acho!!!

Afinal, sou um mero leitor, eleitor, leigo, mas com vez e voto para poder expressar o que penso e escolher os meus representantes políticos – e quase sempre os políticos que escolho não são eleitos. Às vezes sim, em nível municipal [na minha cidade natal, Marília-SP], três vezes votei em Sônia Tonin, duas vezes foi eleita!

Onde quero chegar com tudo isso? Não sei, apenas registrar essas palavras. Se minimamente servir para suscitar um discussão saudável, trazer à memória fatos esquecidos – temos uma memória muito curta em muitos quesitos, principalmente no âmbito político –desenterrei algumas questões da minha velha infância, ainda que muito pessoais! Quem mais tem memórias políticas, leigas ou profissionais?!

Estou realmente espantado com algumas “preocupações” e “medos” de pessoas letradas em relação à possível eleição de Marina Silva como presidente do Brasil: “posicionamento fechado para questões do agronegócio, indústria, etc.”, “adepta ao socialismo radical ‘cuba-venezuelano’, entre outros que, quem está com “medo” de Marina Silva sabe do que escrevo... [Medo da Marina Silva? Faz-me rir. Ninguém ficou com medo de um candidato que sempre preferiu a população armada?].

Regina Duarte – atriz global, foi paga para afirmar em rede nacional que tinha medo do PT/Lula (campanha para presidente de 2006). Lembram disso? [Regina Duarte voltou a fazer história – no sentido mais vexatório possível, como secretária da cultura no governo atual; ridícula para dizer o mínimo] Vamos combinar: 8 anos de Lula mais 4 de Dilma somam-se 12 anos de PT. Já é o suficiente, não?! [Dilma foi reeleita, porém, sabemos o que aconteceu: todo um circo foi armado para culminar no impeachment; assume o vice, Michel Temer e, 2018, eleito o candidato com o discurso mais cheio de ódio, sem programa, sem debates. Vociferava contra o PT, contra a corrupção, contra kit gay nas escolas. A Lava Jato, Sérgio Moro, FBI e Estados Unidos, quanta coisa debaixo do pano; tudo premeditado. Os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário estão à mercê de milicianos, com discursos e ações extremistas. Banalização da Ciência e das Instituições que compõem a Democracia].

Porque, então, não voto em Aécio Neves? PSDB na minha leiga leitura não tem feito nada de muito produtivo e perene enquanto partido eleito e reeleito no Estado de São Paulo, principalmente para categorias como professores (na condição de funcionários públicos) e para o sistema educacional estadual [PSDB é um câncer! Não é pura e simplesmente “não tem feito nada de muito produtivo e perene”. Deliberadamente, sucateiam a Educação, Saúde e Segurança Pública, seja em São Paulo, seja aqui no Paraná, oito anos de Beto Richa como governador, um verdadeiro caos para a Educação Pública].

Marina Silva, figura frágil – fisicamente digo, me remete à figura frágil de Cecília Meireles, outra mulher que tenho a oportunidade de admirar pelas abundantes palavras que deixou registradas em histórias, crônicas, contos, poesias... Como gostaria de ver Marina Presidente, figura frágil, porém, de posicionamento político firme.

O medo do PT – que comia criancinhas – não é real, pois o partido teve mais de uma década para mostrar suas potencialidades e debilidades. [E a demonização dos partidos de esquerda, que o comunismo, que vamos nos tornar uma Venezuela, que Cuba, blá, blá, blá.... É preciso amadurecer!]. Aliás, criou uma artimanha cruel de “bolsa-tudo”, incentivando o já desacerbado e inexistente planejamento familiar nas camadas mais carentes no Brasil, afinal, a distribuição é por cabeça! Instala-se o medo nessas famílias de que a mudança de partido irá lhes tirar essa pequena fonte de renda [Aqui, mudei radicalmente. Sou integralmente a favor da proposta de Eduardo Suplicy, que há anos luta pela implementação da Renda Básica e, nesses tempos de pandemia vimos como é importante uma política social clara, para atendimento àqueles que são vítimas do sistema totalmente desigual em que vivemos].

Deveríamos, todos, ter medo da corrupção e da lógica “politiqueira” em que a grande maioria acaba, mais cedo ou mais tarde, participando... A frase “facebookiana” atribuída a Eça de Queiroz: “as fraldas e os políticos devem ser trocadas pelos mesmos motivos”, deve ser praticada por nós, eleitores, com consciência!

Assim, que o medo da ambientalista evangélica e tantos outros adjetivos que possa reunir e atribuam a ela – sendo reais ou inventados, seja enfrentado pela coragem de enfrentarmos o novo, que possamos dar a Marina Silva e sua equipe a oportunidade de mostrar suas potencialidades e debilidades nesses próximos 4 anos, já que fez compromisso público pela não reeleição, caso eleita agora em 2014.

E se, por um acaso, começar a desandar, ninguém está no cargo de Presidente para sempre; voltemos ao exemplo de Collor que entrou para a história do Brasil como o primeiro Presidente deposto por “impeachment”, por pressão popular – se é que foi assim, conforme minha ingênua leitura e lembrança do fato. Até em países como o Egito, 30 anos depois o presidente consegue ser deposto. Ninguém é vitalício no cargo, nem Fidel Castro; óbvio, as consequências dos atos podem durar alguns anos, décadas depois, mas sempre há a chance de um recomeço!

Confesso que fiquei muito desanimado com a impossibilidade da criação da REDE em tempo hábil para que Marina pudesse se candidatar a presidente [a Rede Sustentabilidade foi criado e quase me filiei]. Não me animei muito com a coligação do PSB e Marina sair como candidata a vice-presidente com Eduardo Campos – figura desconhecida para mim e, acredito para muitos de nós do Sul e Sudeste do Brasil; mas estava firme no propósito de votar nele, pelo mérito da vice.

Será que diante da trágica morte de Eduardo Campos, de tudo que já foi especulado, alguém não divulgou que a verdadeira mandante da queda do avião onde estava Eduardo e seus assessores, tenha sido Marina Silva, essa fundamentalista, para, enfim, tomar o lugar que tanto almejava, o de candidata da coligação. Há tanta imaginação nesse meio! [Mais uma morte misteriosa, essa de Eduardo Campos, como de tantas outras figuras nesse Brasil de política perversa].

Continuo esperançoso de um país melhor para meus filhos, de que não precisamos levá-los ao exterior para que tenham uma formação de primeiro mundo. Tenho esperança de um dia poder dizer a quem quer que seja, que pago por impostos justos, para desfrutar de serviços públicos de qualidade, seja em saúde, educação, transporte público... não usarei a última frase de Eduardo na “surreal” entrevista ao Jornal Nacional na noite de 12 de agosto de 2014: “Não vamos desistir do...”, já virou jargão e jargões costumam ser apenas jargões!

Estou decidido no propósito de 2010: votar em Marina Silva, por acreditar que a mudança, o novo, apesar do friozinho na barriga, sempre trazem consigo novos horizontes e possibilidades que o velho e a mesmice não permitem vislumbrar [Não estou esperançoso, como antes, entretanto, não desisti de tudo. É preciso resistir. O desejo de mudar do Brasil cresceu muito mais. Cogitamos, inclusive morar na Bolívia, afinal, em casa são três bolivianos. Confesso que está bem difícil manter a sanidade diante desse cenário, não só brasileiro, mas mundial de tudo fora de lugar. Nada esteve no lugar. Nunca. Perdi a ilusão de que as coisas estavam no lugar e, mesmo as que não estavam, eu podia contribuir de algum modo para colocar no lugar. Não posso nada, nem me iludir mais!].

André Coneglian, um leigo! [continuo leigo na política, mas como escrevi, não precisa ser um cientista político para saber que o Brasil está um desastre].

quinta-feira, agosto 20, 2020

DUAS AVÓS

 Minhas duas avós morreram no dia 20. A paterna, em 20 de fevereiro de 2000. A materna, hoje, 20 de agosto de 2020. Vinte anos de diferença. As semelhanças e proximidades entre elas eram meras formalidades; as diferenças e antagonismos, não. Provavelmente, os antagonismos entre as minhas duas avós me ensinaram muito sobre a vida.

Olinda Brichi Coneglian, nascida em 02 de junho de 1916. Nair Rosa de Oliveira da Silva, nascida em 26 de maio de 1940.

"Vó Linda" sempre foi Vó Linda e "Vó 'Nail'" - era assim que a chamávamos quando pequenos, a Vó Nair.

Ambas eram Geminianas: uma de maio, outra de junho. O aniversário delas tinham exatamente uma semana de diferença.

Se o aniversário da Vó Nair foi terça-feira, na terça seguinte era o aniversário da Vó Linda. Tinham, entretanto, 24 anos de diferença. Vó Nair tinha idade para ser filha da Vó Linda.

Como todo bom geminiano gostavam de falar e falar e falar. Porém, Vó Linda tinha uma voz tranquila, Vó Nair foi mais explosiva.

Vó Linda contava as histórias da família, de pessoas que já tinham partido. Vó Nair contava a história do "Berrador", provavelmente a primeira história de medo que ouvi na vida.

Vó Linda costurava e fazia crochê. Vó Nair fazia tricô.

Vó Linda casou de véu e grinalda, aos vinte anos. Vó Nair fugiu aos 18 para casar, desde os 15, cuidava dos irmãos menores, pois tinham perdido a mãe.

Ambas tiveram sete filhos. Vó Linda teve duas filhas e cinco filhos, o caçula é o meu pai. Vó Nair teve três filhas e 4 filhos, minha mãe é a segunda mais velha.

Vó Linda era branca. Vó Nair era preta.

Vó Linda foi Católica Apostólica Romana. Vó Nair foi Cristã Evangélica Pentecostal.

Vó Linda foi viúva por quase três décadas (28 anos). Vó Nair somente três anos.

Vó Linda não teve casa própria; morava com a filha mais velha. Determinada época, arrumava sua mala e fazia uma romaria pelas casas dos filhos e ali passava os dias que desejava, enquanto se sentia útil. Queria ajudar com as tarefas domésticas.

Vó Nair teve casa própria, humilde, de conjunto habitacional, reformada e melhorada ao longo dos anos. Foi a casa que eu, meus irmãos e primos passávamos alguns finais de semana, onde a família se reunia em datas comemorativas, especialmente, o Natal.

Vó Linda teve muitos netos, eu era um dos mais novos, junto com meus irmãos e poucos primos mais jovens. Vó Nair teve netos, bem menos, eu era o segundo.

Vó Linda vivenciou 19 anos da minha existência, não soube que me converti ao protestantismo, não soube que entrei na universidade, mestre e doutor.

Vó Nair participou de tudo isso e muito mais, abrigou minha namorada/noiva em sua casa por 8 meses, foi ao nosso casamento. Foi bisavó do Lorenzo e Benjamin. Veio conosco para Londrina na mudança. Foi comigo na UEL quando levei os documentos.

Vó Linda morreu aos 84 anos. Vó Nair, aos 80.

Vó Linda, branca, católica, viúva há 28 anos, sem casa, são 20 anos de saudades.

Vó Nair, preta, evangélica, viúva há três anos, morreu em sua humilde casa nesta madrugada, em minha cidade natal, Marília-SP. Não a vi enferma, mas já não era mais a mesma desde que meu avô faleceu. Não a verei no caixão. Será para mim como se tivesse simplesmente ido para o lugar que ela tanto almejava: sua morada celestial.

Vó Linda e Vó Nair estão juntas novamente. Minhas duas avós.

quinta-feira, agosto 06, 2020

Sobre Bombas e Guerras (Hiroshima e Nagasaki)

A seguir, um compilado de três livros: "A teoria das nuvens" (2009), "Quadrante" (1962), com a crônica "Bombas com e sem endereço", de Cecília Meireles e "O menino do dedo verde" (9.ed, 1983), 06 de agosto, dia em que se completa 75 anos em que a primeira bomba atômica foi lançada na cidade de Hiroshima, no Japão, por ocasião da Segunda Guerra Mundial.

Acredito que não se arrependerá de ler até o fim. Também agradecerei os comentários, pois é interessante saber o que tais ajuntamentos de palavras e pensamentos provocam nos possíveis leitores deste humilde Quarto do Menino.

Trecho do livro “A teoria das nuvens” (Editora Record, 2009), um romance de Stéphane Audeguy, p. 129-133.

    
            "[...]

No fim do mês de julho de 1945, o estado-maior americano faz seus cálculos: 1.200 soldados americanos morrem por dia nas ilhotas do Pacífico. E bem mais do que o previsto. E acima do suportável para a opinião pública americana. Ainda mais quando o front europeu está praticamente em paz. A quantidade de feridos é ainda mais preocupante, militarmente falando: nunca foi tão alta numa operação desse tipo para o exército americano; são os feridos, não os mortos, que aterrorizam um estado-maior. Pois os feridos são muito mais embaraçadores. Um morto mobiliza dois indivíduos vivos, por uma hora ou duas, para ser enterrado ou transportado para a retaguarda. Um ferido imobiliza, direta ou indiretamente, cinco soldados, por um tempo indeterminado, e por um resultado incerto. No fim do mês de julho de 1945, todas as autoridades americanas interessadas apresentaram a mesma opinião: a guerra do Pacífico deve acabar agora.

A milhares de quilômetros do Japão, numa base militar do Novo México, o exército americano está pronto: dá o toque final ao projeto Manhattan. O projeto Manhattan não data de ontem: há anos, reúne os melhores cientistas de seu tempo, não apenas dos Estados Unidos, mas também de toda a Europa: muitos físicos judeus estão lá, engajados num projeto de pesquisa que deve permitir, é o que lhes dizem, a derrota, do outro lado do Atlântico, do ditador que os expulsou da sua pátria, prendeu seus amigos, matou sua família. Os cientistas judeus e os outros trabalham com ardor. Trabalham ainda mais rápido quando o exército começa a lhes falar dos mísseis V1 e V2, que Hitler estaria prestes a lançar, que seria talvez a arma final. Por fim, são eles, que estão do lado certo, que inventam essa arma final; em 1944, ela é operacional; ninguém nunca foi tão rápido numa invenção tão espantosa, tão poderosa. O estado-maior americano agradece a toda a equipe, e põe-se a estudar as possibilidades de lançá-la na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em nenhum momento, o estado-maior pensou seriamente em utilizá-la na Alemanha. Os cientistas, judeus e não judeus, estão extremamente decepcionados. Ainda não entenderam.

Em julho de 1945, faz muito tempo que um novo tipo de bomba está pronto. Até os alvos foram escolhidos há bastante tempo. A decisão obedeceu a todas as configurações requeridas por uma democracia moderna. Num primeiro momento, um comitê consultivo formado por políticos e militares selecionou diversas cidades, as de Kyoto, Nagasaki e Niigata, as de Kokura e Hiroshima. A respeito de Kyoto, um especialista civil protestou, por causa dos monumentos históricos; descarta-se Kyoto. As outras quatro cidades foram levadas numa lista transmitida à força aérea; a escolha final surgirá o mais tarde possível, segundo critérios logísticos. No último instante, as equipes técnicas encarregadas da avaliação dos efeitos da primeira bomba atômica num espaço urbano real apresentam ao estado-maior da força aérea um requerimento especial: almejando poder medir com precisão o estrago, desejam que os alvos sejam cidades intactas, que nenhum bombardeio clássico tenha danificado. Durante alguns meses, até o início do mês de agosto de 1945. N populações das cidades de Nagasaki e de Hiroshima se consideram afortunadas, já que nenhum bombardeiro americano as sobrevoa. As equipes técnicas encarregadas da avaliação emitem na mesma ocasião um desejo: preferem cidades situadas em depressões, que tornarão mais visível o efeito da explosão, mais fácil de se modelar, de se estudar. O estado-maior da força aérea não vê nenhuma objeção.

Você nunca se perguntou, escreve Akira Kumo a Virginie Latour, por que foram lançadas duas bombas atômicas no Japão, em 1945? Por que Hiroshima, e depois Nagasaki? Por que uma bomba em 5 de agosto, e uma segunda no dia 6 [foi no dia 9, na verdade]? Por que não apenas uma? E uma pergunta que ninguém faz, exceto as crianças, quando lhes explicamos pela primeira vez o que foram esses bombardeios, e são as crianças que têm razão. Mas não Ihes respondemos, geralmente por ignorância, porque é preciso realmente refletir muito tempo para encontrar a resposta a essa pergunta: os Estados Unidos da América tinham inventado dois tipos de bomba atômica e precisavam, portanto, de dois lugares para testá-los.

Em 5 de agosto de 1945, por volta das 7 horas da manhã, um avião americano de reconhecimento sobrevoa as cidades de Kokura, Niigata e Hiroshima. Das duas primeiras, não se pode nem vê-lo nem ouvi-lo, porque o teto nebuloso está bem baixo; o pequeno avião não assusta ninguém; quando sobrevoa Hiroshima às 7h15 da manhã, o céu está limpo, sem vento, todos os habitantes que já se levantaram podem vê-lo, mas não se inquietam: não se trata de um bombardeiro. Além disso, é a terceira vez em três dias que esse avião leve vem e vai; nunca esteve acompanhado de um conjunto de bombardeiros o suficiente para vê-lo passar no céu de Hiroshima pensam em seus irmãos que não têm a mesma sorte, lá, a leste, no front do dos, como alguns militares temiam. Os civis que são matinais Pacífico. Pensam em todos aqueles que perderam nessa guerra Aprenderam a não acreditar mais nos comunicados triunfantes da rádio oficial. O aviãozinho parte bem rápido, num zumbido de abelha; a vida continua, o sol já dissipou as brumas matinais a cidade inteira acorda. Há três dias, esse aparelho de reconhecimento meteorológico de um belo cinza azulado procurava uma cidade sem nuvens. Acaba de encontrar uma. Transmite instantaneamente as informações necessárias a seu posto de comando, depois volta à base, o mais rapidamente possível.

Uma hora depois, um segundo avião vem sobrevoar Hiroshima. Este é um bombardeiro. Volta em altitude bem alta; é possível ouvi-lo, sem vê-lo. Civis levantam os olhos, mas o céu está vazio. Militares se admiram: aviões como esse nunca se deslocam sozinhos. Durante longos minutos, os mais inquietos prendem a respiração, esperando um bombardeio, ou o zumbido de toda uma esquadra. Mas nada acontece; deve ser um piloto perdido, cujo rádio está em pane, e que, provavelmente, o aviãozinho procurava. A segurança civil decide não soar o alerta. E de repente o barulho não está mais lá, como se o avião tivesse desaparecido de uma vez. É que o bombardeiro acaba de girar violentamente sobre a própria asa, e o vento das alturas, desde então, leva para o mar o barulho de suas hélices. Sua missão está terminada: ele acaba de lançar uma única bomba, pesando quatro toneladas. Ela não foi concebida para tocar o chão: diversos pára-quedas quase rígidos se abrem para desacelerá-la, pois se calculou que convém, para uma eficácia máxima, que ocorra 600 metros acima de seu alvo. Logo após o bombardeiro de tipo B52 ter soltado a sua carga, há certamente um instante estranho para aqueles, se eles existem, que notaram esse pontinho brilhante que desce lentamente em direção à cidade, um desses instantes que parecem se estender até durar. Há um momento único em que esses poucos homens e essas poucas mulheres, se eles existem, se encontram numa situação que o homem não conhece mais há séculos; um momento como os índios da América viveram, ao olhar o cano dos fuzis que magníficos centauros apontavam para eles; um momento como vivem os animais caçados que não aprenderam a conhecer o homem. E um instante único num século de ferro e fogo, no silêncio de um céu sem nuvens, que parece ter absorvido o tempo e o espaço, com exceção desse ponto brilhante no céu, que desce. Em seguida, esse instante desaparece no esquecimento absoluto, porque a bomba atômica explode, exatamente na altura prevista pelo estado-maior."


Quando li essas páginas, num livro que mistura ficção e realidade, para narrar como nasceu o serviço de meteorologia (A Teoria das Nuvens), eu fiquei estupefato! Nunca uma bomba atômica tinha sido lançada no planeta Terra. Claro que as pessoas não esperavam as consequências daquele ponto que se desprendeu do avião!


Na sequência, trago a crônica "Bombas com e sem endereço", de Cecília Meireles:





            Por fim, no livro "O menino do dedo verde", de Maurice Druon, o capítulo 14 "no qual Tistu, a propósito da guerra, faz a si próprio novas perguntas".





            Guardei comigo durante muito tempo a doce ilusão de que existiam meninos e meninas do dedo verde espalhados pelo mundo, que pudessem, a seu tempo e a seu modo, mudarem seu ambiente e, consequentemente, as pessoas e circunstâncias. A ilusão se perdeu! Resta-me a alegria da palavra.



terça-feira, agosto 04, 2020

TODA CRIANÇA MERECE

Uma criança, da janela do ônibus olhou para um caminhão cegonha, provavelmente pela primeira vez. Maravilhado com tamanha monstruosidade – um caminhão enorme carregando outros tantos carros, o menino, de olhos arregalados, expressou: - Uau! – mas não foi um simples “uau”; foi pausado, demorado em cada vogal.

Eu assisti a essa cena, jovem, na correria do curso superior. Emocionei-me com o espanto do garoto mirando o caminhão cegonha e senti inveja! “Quando foi a última vez que fiquei estupefato com algo em vida?” – pensei naquela ocasião.

Caminhão cegonha

Hoje, faço aqui na escrita, um exercício de reunir algumas cenas da minha infância/juventude que me aproximaram de uma sensação de espanto, agradável espanto, por vivenciar este ou aquele sentimento por primeira vez.

A primeira vez que vi uma jabuticabeira repleta de frutos: “u-a-u!”, aquela árvore toda negra de frutos redondos brilhantes me hipnotizou. Era como um milagre, tantas frutas presas por fino caule direto do tronco. Precisei desenhar. Óbvio que minha representação não chegou perto da sensação. Eu tinha 17 anos de idade.

Desenho "Jabuticabeira", por André Coneglian, 20/09/1998

Na infância tive o privilégio de passear aos fins de semana, algumas férias, chácaras, sítios e fazendas. O medo do rural – touros, bois, vacas, porcos, perus, patos, gansos; a curiosidade de como era a colheita de feijões, a felicidade de ter dois bolos de milho no meu aniversário de sete anos – férias, longe dos pais, no sítio dos tios.

Há uma cena gravada em minha memória como flashback de filme: um depósito rústico, madeiras, telhas, sem paredes, no centro um tacho enorme, fogo, calor, muito melado borbulhando, uma pá, o homem mexendo sem parar. “ – É para fazer rapadura, curioso!”.

imagem retirada da internet

Amamentar carneirinhos, milho colhido direto do milharal, transformar-se em pamonha, a folha do milho vira a própria embalagem. Apartar o bezerro da vaca, amarrar perto da mãe, tirar leite, fazer queijo, manteiga. Observar a plantação de abacaxi, como floresce, onde fica a coroa e a fruta.

Imagem retirada da internet

Observar! Eu não tinha coragem de me aproximar dos animais, raras vezes coloquei a mão na massa, entretanto, deleitava-me na observação do processo.

As crianças de hoje recebem tudo pronto. Fruta sem casca em pedaços no pote. Leite vem da embalagem tetra pak. Manteiga em retângulos milimetricamente embaladas ou somente margarina em potes.. Rapadura! “É de comer?”, aposto que nem sabem o que é. A vida é processo. O processo é mágico. Respeitando as fases, etapas, o produto final será mais valorizado e melhor aproveitado.

Toda criança merece viver de “u-a-u!”. Toda criança merece se surpreender com uma jabuticabeira carregada de frutos. Toda criança merece saber como é feita a rapadura, a pamonha, o queijo e a manteiga. Toda criança merece poesia, aventura, emoção. Toda criança merece muito mais do que os adultos estão lhes oferecendo. A escassez de “uau” está entristecendo as crianças e, consequentemente, o mundo.

 

André Coneglian, 03/08/2020.

segunda-feira, agosto 03, 2020

O AFOGADO - Cecília Meireles


Domingo, 02 de agosto de 2020, li o poema "O afogado" de Cecília Meireles, na íntegra abaixo para os leitores conhecerem. A vida é basicamente tragédia. Uma pessoa morrer afogada é uma tragédia.

O poema de Cecília, entretanto, imprime à tragédia, a morte por afogamento e o encontro com o corpo inerte, uma dimensão estética desse horror. "Era como os peixes/ finalmente quietos:/ o peito, gelado/ e os olhos, abertos. [...] Miravam com pena/ sua dúbia face./ Quem era? Quem fora?/ Nas ondas gastara-se."

Hoje, 03 de agosto, buscando uma imagem para "casar" com o poema, encontro o quadro "Cabeça de um homem afogado" (1819), de Jean-Louis André Theodore Gericault, que também é o pintor do quadro "A balsa da Medusa" (1817). O mar, tragédias no mar, foram temas constantes nas obras do pintor.


Quadro: "Cabeça de um homem afogado" (1819), de Jean-Louis André Theodore Gericault


Pelo mar azul,
pela água tão clara,
caminhava o morto
esta madrugada.
 

Subia nas vagas,
bordado de espuma,
seu corpo sem roupa,
sem força nenhuma.

O sol cor-de-rosa,
nascido nas águas,
via o navegante
procurar a praia.

Sem voz e sem olhos,
chegava de longe.
Chegava – e ficara
além do horizonte.

Por dias e noites
viera atravessando
caminhos salgados
como o suor e o pranto.

Dançarino estranho
de passos macabros,
com o corpo despido
e grossos sapatos.

Dançando e dançando,
por noites e dias,
chegou dentro da alva
às areias frias.

O mar e a neblina
que um morto navega
são muito mais fáceis
que, aos vivos, a terra.

Vencera a inconstante
planície intranquila
numa silenciosa,
cega acrobacia.

E então se deteve
seu corpo dobrado
por aquele imenso,
póstumo cansaço.

Era como os peixes
finalmente quietos:
o peito, gelado
e os olhos, abertos.

Um fio de sangue
corria em seu rosto
irreconhecível
de secreto morto.

Miravam com pena
sua dúbia face.
Quem era? Quem fora?
Nas ondas gastara-se.

Nu como nascera
ali se caía.
Só tinha os sapatos:
lembrança da vida.