O Quarto do Menino

"No meu quarto que eu lia, escrevia, desenhava, pintava, imaginava mil projetos, criava outros mil objetos... Por isso, recebi o apelido de 'Menino do Quarto', título que adotei como pseudônimo e hoje, compartilho neste 'Quarto Virtual do Menino', o que normalmente ainda é gerado em meu próprio quarto". Bem, esse início já é passado; o 'menino' se casou (set/2008); há agora dois quartos, o do casal e o da bagunça... Assim, diretamente do quarto da bagunça, entrem e fiquem a vontade! Sobre a imagem de fundo: A primeira é uma reprodução do quadro "O Quarto" de Vicent Van Gogh; a segunda, é uma releitura que encontrei no site http://www.computerarts.com.br/index.php?cat_id=369. Esta longe de ser o MEU quarto da bagunça, mas em 2007, há um post em que cito o quadro de Van Gogh. Como disse, nada mais propício!!!... Passaram-se mais alguns anos, e o quarto da bagunça, já não é mais da bagunça... é o Quarto do Lorenzo, nosso primogênito, que nasceu em dezembro de 2010!

quinta-feira, julho 10, 2025

'DE DENTRO DA ESCURIDÃO PODE-SE ESCOLHER O MUNDO EM QUE SE QUER VIVER", PAULO ROBERTO FARIAS

 Preciso pontuar aqui no início que não sou crítico literário - e não o gostaria de ser. Eu escrevi isso ao Paulo Roberto Farias, ao finalizar a leitura que fiz do primeiro livro dele "As tessituras da noite" (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013). Ontem - 09 de julho, iniciei a leitura do segundo livro do Paulo, "Deixa eu te falar da noite" (Caos & Letras, 2021) e hoje finalizei a saga de Marla, personagem-narradora. Assim, o que escrevo, é antes de tudo como registro de leitor, para um futuro reler este texto e me lembrar do livro, da história e das sensações causadas pela leitura.

Tinha separado um livro que está há um tempo na minha estante: "Arquipélago Gulag", de Alexandre Soljenítsin, para iniciar neste recesso de trabalho de poucos dias. Então brinquei com Paulo, quando o livro chegou: "Eu ia começar a ler um russo, mas vou ficar com o gaúcho!".

Capa do Livro "Deixa eu te falar da noite"

Marla, personagem fictícia que Paulo tão bem criou, por meio do seu fluxo de pensamento,  apresenta-nos sua rotina de funcionária numa lavanderia em Porto Alegre. O desejo de passar no vestibular para o curso de Letras em universidade pública, suas pouquíssimas amizades, seu estilo de vida simples e personalidade, lembrou-me, de algum modo, a personagem principal de "A hora da estrela", de Clarice Lispector, a Macabéa. Ainda, fiz algumas associações com Amélie Poulain, sempre tão preocupada com as demandas alheias e nunca com suas próprias.

E, infelizmente, reconheço esta inocência e credulidade no André do passado, criança, jovem, mesmo adulto, acreditando no melhor das pessoas, acreditando na evolução da humanidade. Por várias circunstâncias, externas e internas, fui parar na escuridão do título, que é uma das frases que Marla sonha e tem necessidade de anotar, mas essa frase especificamente ela diz não anotar, mas não entende seu significado. Muita luz cega! E vêm a minha mente agora, uma citação que Camus faz de um de seus autores favoritos:

"[...] não te deixes filiar. Tatear sozinho no escuro não é fácil. Mas é um mal menor. [...] avançar sempre, no meio de todos, no mesmo caminho pelo qual, na noite da espécie, multidões de homens, há séculos, caminham hesitantes em direção a um futuro inconcebível". ("A inteligência e o cadafalso", Albert Camus, Record, 4. ed., 2018, p. 103).

No recorte de tempo-espaço narrado na história, Marla tem apenas 26 aninhos e, como todo ser humano como ela, que pensa demais "o que os outros irão pensar de mim?", de um modo ou de outro, se aprende que não importa o que os outros pensam a seu respeito, desde que aja com verdade para si, sem ferir propositalmente os demais.

Meu primeiro emprego foi aos 16 anos - e meio, como office-boy, num escritório de cobranças, no centro da minha cidade natal - Marília-SP. Estranho! Escrever office-boy e pensar que não existe mais essa profissão. Bem, afinal sou do século passado. Tinha duas horas de almoço e levava marmita. Comia rápido para poder ir à biblioteca municipal, três, quatro quadras distante do escritório e lá passava o restante do meu horário de almoço. Li muitos livros lá mesmo, sem nunca fazer cadastro da biblioteca, li vários livros de Agatha Christie.

Nessa época eu fazia um cursinho de Inglês e Espanhol, lembro de ter encontrado um livro em Espanhol e tentei a leitura "La cueva de ladrones" - faço uma procura agora no Google, mas não encontro o autor... e Marla tem sua rotina literária, toda terça-feira ir à biblioteca pública emprestar os livros e ter companhia durante a semana e aprender com as histórias. Eu gostaria que Paulo, o autor, pudesse ter nomeado alguns desses empréstimos de Marla.

Fiquei satisfeito com o final da história, apesar de ter imaginado mil outros desfechos! O que me impressionou muito, quase perto do final, foi a reflexão de Marla sobre a morte de uma das seis samambaias que tinha em sua varanda da quitinete da avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, aquelas com grandes coqueiros (eu nunca estive em Porto Alegre, aliás, o mais longe que fui ao Sul do Brasil foi Florianópolis-SC).

Avenida Osvaldo Aranha Bom Fim, em Porto Alegre-RS

Marla compra uma nova samambaia e a coloca na varanda. Basicamente, a filosofia de vida de uma samambaia que é a nossa vida humana, os jovenzinhos ("assim novinha e toda bem verde"), cheios de gás e ideologias pelas quais lutar e seguir:

"É tão bonita uma samambaia assim novinha e toda bem verde que as outras parece que ficam até mais apagadinhas perto dela. Só que eu não me engano e por isso não coloquei ela num lugar de destaque só porque é mais bonita que as outras. Coloquei ela bem misturada junto com as outras pra ela ir logo aprendendo que a vida não é sempre assim toda verde e bonita, e que ela só vai sobreviver aqui junto com as outras quando perder um pouco desse brilho de plástico que ela tem. Aqui na varanda não vai ser como lá na floricultura que tinha ambiente climatizado, aqui ela vai ter que passar o dia inteiro junto com as outras, e aprender que não é melhor que elas só por ser mais bonita, e às vezes vai pegar sol nela, e um dia eu posso até me esquecer de molhar ela. E se ela quiser mesmo continuar vivendo vai ter que aprender tudo isso logo, no meio das outras samambaias da minha varanda. Claro que eu não vou me esquecer de molhar ela todos os dias, nem de tirar ela da varanda se estiver pegando sol, e até vou colocar adubo se ela estiver mais fraquinha, mas ela não precisa saber de nada disso. Ela tem que aprender a viver como se eu não estivesse sempre aqui pra cuidar dela." (FARIAS, 2021, p. 173).

A questão é que, como seres humanos, temos que aprender logo e bem aprendido, que não temos ninguém para cuidar da gente. Somos samambaias solitárias e, para finalizar, lembro de um aforisma famoso de Clarice Lispector sobre dar amor e receber amor:

"Ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca".

Fico feliz que Marla soube dar amor e encontrou alguém que faz as pernas dela tremerem.




terça-feira, junho 24, 2025

O DIA EM QUE CONHECI OS VERSOS DE NICANOR PARRA



Eu perguntei não sei quantas vezes
Mas ninguém responde minhas perguntas.
É absolutamente necessário
Que o abismo responda de uma vez
Pois o tempo está ficando curto.

Nicanor Parra


Foi domingo, 22 de junho de 2025. Vi estes versos no story (Instagram) da querida poeta mineira, Adriane Garcia.

A partir daí, foi um mergulho por alguns poemas de Nicanor Parra. Li o que tinha disponível sobre sua biografia. O mais assombroso, mesmo não sabendo quando escreveu estes versos - “pois o tempo está ficando curto”, pensar que foi escrito por um homem que viveu 103 anos. Nicanor Parra (05/09/1914 - 23/01/2018), matemático e poeta chileno.

Logo depois escrevi no Direct para Adriane:

Querida Adriane,

Eu não conhecia nada de Nicanor Parra. Após ler estes versos e mandar uma reação "oooohhhh - boca aberta", fiz associação com alguns versos de Cecília Meireles e escrevi o que está abaixo, antes de escrever esta introdução...

Não sem antes pesquisar sobre Nicanor Parra e estou aqui, estupefato! Agradecido por você ter jogado a isca, por ter riscado esta faísca... Já li uns 10 poemas, em textos que homenageiam Nicanor...

Muito obrigado!

---------------------

[o que escrevi antes da introdução acima]:

Minha referência é Cecília Meireles, sabe disso, não é? Meu mundo é dividido em a. C. M e d. C. M, e, claro que depois de Cecília Meireles, venho todos esses anos tentando absorver, incorporar as palavras dela.

E não é algo como uma "paixonite" ou uma "celebrização" da pessoa, da figura pública. É uma conexão inexplicável, mediada pelas palavras, temas, rimas, essência de vida e filosofia de vida, da existência terrena e do Desconhecido...

O poema de Cecília em que está o verso – “Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada”, que fiz analogia com estes de Nicanor Parra, é o que segue:


quinta-feira, abril 24, 2025

ONDE ESTÃO?

Amigos de infância. Tive!

Onde estão?


Amigos de escola. Alguns!

Onde estão?


Amigos do trabalho. Raros!

Onde estão?


Amigos de vida. Existem?

Onde estão?


Amigos de tela. On/Off.

Mais de mil e contando.


André Coneglian

25/04/2025

sábado, abril 19, 2025

HOMICÍDIO CATÁRTICO

 

Matei o deus que morava em minha ilusão

Habitar o mundo aguardando o Paraiso,

A vida eterna no céu, é droga fácil e útil (?)

 

Habitar o mundo incrédulo é pesado

Todavia, é um caminho sem volta.

Aprende-se a viver com o Oco.

 

Esperar o colapso desta engrenagem

bioquimicapsicofisiologica que

carrega minha existência.

 

E, enfim, o que fiz, acreditei, desacreditei,

falei, escrevi, espalhei ao vento

não terá importância alguma.

 

André Coneglian

17/04/2025

ALMA SOLTA


 

domingo, abril 06, 2025

A CAPACIDADE DE TENTAR COMPREENDER

O verbo tentar faz diferença na sentença-título, pois eu não entendo tudo, aliás, não entendo quase nada, na vida somos todos doutores em ignorância (não a ignorância burra, pejorativa). Na vida, mais ignoramos do que sabemos. E, no pouco que vou sabendo, tento compreender, especialmente as injustiças e contradições deste mundo. Mas, sempre será uma compreensão precária, pois faltarão muitas peças, diversas variáveis para uma análise completa.

Perdi a capacidade de acreditar. Não acredito em deus ou deuses e seus livros sagrados. Acredito menos nas pessoas, talvez haja um resquício insistente de esperança nas crianças.

Porém, é sabido que o mundo as engole. Elas tentam ser diferentes, questionam. Todavia, o mundo, o sistema, a máquina não permite e qualquer tentativa de evolução/revolução é cortada, tolhida, esmagada…

Nossa existência biológica só é possível graças à evolução, aos genes do pai e da mãe, aquela conta maluca de 4 avós, 8 bisavós, 16 tataravós, etc…

Entretanto, existir como humano consciente da finitude e o nonsense de tudo é extremamente solitário. Há possibilidades de aproximações com vivos, aproximações com mortos que registraram suas próprias tentativas de compreensão de existir. Tudo ilusão, passatempo, preenchimento das horas, desculpas para seguir.

Amigos, tive alguns. Do colégio sobraram poucos, alguns eu sigo nas redes sociais. De trabalhos anteriores, outros poucos e ainda nos encontramos. As redes sociais enganam, iludem com a ideia de “amizade”... mas eu compreendo. Está tudo mundo perdido. Tudo é tão caótico. A manutenção da vida é cara e cansativa. Não sobra tempo para as neuroses alheias (a não ser o profissional que recebe para nós fazer ouvir nossas neuroses com nossas vozes).

A constatação, nua e crua, é que somos e seremos até a última alma vivente, vazios e sozinhos… mas eu entendo! Por minha vez, que trabalho 10 horas por dia, de segunda a sexta, responsável por uma família, busco seguir a cartilha, é necessário! 

As poucas horas de “descanso” - pois a mente não descansa nunca, têm sido com vídeos idiotas (reels), memes, mensagens inspiradoras ou de revolta em inglês, espanhol, italiano… assistir filmes, séries, ler Cecília Meireles, às vezes, escrever, como agora…

E, me vem à mente (pois ela é carrasca) neste exato momento, aquele poema de Mário Quintana:


SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…

Quando se vê, já é 6ª-feira…

Quando se vê, passaram 60 anos!

Agora, é tarde demais para ser reprovado…

E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,

eu nem olhava o relógio

seguia sempre em frente…


E iria jogando pelo caminho a c

asca dourada e inútil das horas.

terça-feira, abril 01, 2025

CAMINHANDO E FILOSOFANDO

Às 18h30, fui buscar pão no mercado aqui próximo de casa, ainda que seja apenas duas quadras, é uma caminhada que permite muitos pensamentos. E, pelo horário, o trânsito estava um caos; atravessar a Avenida Higienópolis é demorado e perigoso.

Na caminhada de hoje, lembrei de um trecho da série Sense8 – a única série que me permito rever e rever os episódios, trecho do qual fiz uma postagem em 15 de maio de 2023 (Instagram/Facebook), cujo print mostro abaixo:

 



Segue sendo assustador imaginar que este tipo de homem continua circulando entre nós. Veja bem, não há nenhum mal em ser “simples” e guiar-se por uma filosofia de vida que se resume a “comer, beber, cagar, foder… e lutar por mais”. O problema é forçar as pessoas de sua convivência a engolir este tipo de filosofia, na maior parte do tempo de jeito truculento e intimidador.

Lembrei da canção “Casa no campo”, cantada por Elis Regina, associando com uma imagem de uma publicação do Instagram, de tantas imagens estáticas e em movimento que entupi minhas vistas (cansadas) no dia de hoje:


Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais

Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais

Eu quero carneiros e cabras
Pastando solenes no meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas

Eu quero a esperança de óculos
E meu filho de cuca legal
Eu quero plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal

Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê

Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros, e nada mais
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos, meus livros e nada mais
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros, e nada mais

 

Desde que conheci esta música, eu sempre quis esta casa no campo. Entretanto, como frequentei algumas casas no campo desde a infância, sabia que o trabalho no campo é árduo, cuidar de plantações e animais. Talvez uma “simples” chácara, como a que fomos convidados para conhecer e passar umas horinhas na piscina (ou na beira da piscina, como eu fiquei, sendo devorado por borrachudos).

Apesar disso, foi uma tarde muito interessante, se eu contar que a chácara é de um casal de médicos, com uma filha única pré-adolescente, pomar com várias árvores diferentes – jaqueira, mangueira, jabuticabeira, pitangueira, etc... e flores, e uma “casa de boneca” de madeira enorme e, dentro da casa principal um quarto dedicado ao hobby do homem – aeromodelismo.

É uma realidade ainda distante de nós (minha família e eu), enfrentando o cotidiano para pagar aluguel, alimentação e umas poucas regalias (internet, lanche de vez em quando, etc).

Quero deixar claro que, na minha caminhada atrás dos dez pães e 1 litro de leite, eu pensei no trecho da série Sense8 e também num filme que amo “Peixe Grande e suas histórias maravilhosas”, apresentado pelo amigo Gilson Cardoso à nossa equipe da época no Núcleo de Atendimento Psicopedagógico, da Secretaria Municipal de Educação de Marília-SP.

“Peixe Grande e suas histórias maravilhosas” tem um enredo lindo, encantador, todo ele. Todavia, há um trecho-chave, cujo acontecimento na história faz todo enredo possível. Se você pretende assistir ao filme – o que recomendo fortemente, o spoiler que darei logo mais não estraga a experiência.

O personagem principal, quando adolescente junto com outros dois amigos, descobrem como irão morrer, cada um de um modo e épocas diferentes. E, desde então, esta questão me atormenta: como seria se eu soubesse o modo e quando irei morrer, viveria os dias até lá de modo melhor e mais intenso? É possível tantas elucubrações acerca de viver sem saber o dia e enredo da própria morte... Então como gastar todos estes dias?

Neste momento em que me organizei para registrar os pensamentos e os questionamentos, obviamente, outras ideias e associações foram surgindo e, simplesmente fui adicionando, como a letra de “Casa no Campo” e a breve descrição da visita à chácara do casal de médicos.

Basicamente, pensamentos e questionamentos sobre o nonsense que é estar vivo e consciente sobre a existência, ou seja, nada novo debaixo do sol escaldante, da promessa chuva, de terremotos catastróficos em terras longínquas, com pouquíssimas almas dispostas a sentarem e escutarem nossas neuroses...

E você que me lê, vivo, provavelmente (e eu, terei partido?), a vida é simples? Comer, beber, cagar, foder e lutar por mais? Ou mais do que o funcionamento fisiológico de um animal mamífero?

terça-feira, março 04, 2025

TEM SANGUE ETERNO A ASA RITMADA

O título do texto é um verso do poema "Motivo" de Cecília Meireles.

Cecília linda!

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.


Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

- não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

- mais nada.

"Sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno a asa ritmada." Sangue tomado como sinônimo de vida (sangue eterno) dada pela asa ritmada, ou seja, o canto, a canção, o ritmo, a melodia; "E um dia sei que estarei mudo", o eu-lírico registra a sua morte terrestre. Aparentemente contraditório: eternidade/morte, porém, a vida daquele que entoou seu canto não se acabará. Está eternizada por meio daquilo que cantou!

Cecília dispensa apresentações. Poeta Maior da nossa Língua Portuguesa. Inteligente. Livre Pensadora. Às vezes, pergunto-me se Cecília seria esta Cecília se os pais não tivessem morrido e, portanto, não fosse criada pela avó materna, Jacinta Garcia Benevides.

Na entrevista ao jornalista Pedro Bloch, Cecília diz que todo este cenário pré-nascimento (a morte de dois irmãos e uma irmã, do pai), a morte da mãe antes de completar três anos de idade, o cuidado extremo da avó com medo de perdê-la, como perdeu os demais netos, genro e filha, a solidão desta menina, contribuíram para sua formação, desta que produziu um inventário da Natureza e dos vastos sentimentos humanos.

Especulações à parte, o objetivo inicial do texto foi listar os poemas que têm como título "Canção", espalhados em seus vários livros publicados. Há muitos destes poemas que levam "canção" com um complemento: "Canção póstuma", "Canção do caminho", "Canção da tarde no caminho".

Há ainda outros poemas cujos títulos e temas se relacionam com "canção", como "música", "serenata", "cantiga", "som"... não incluirei na relação referência a danças (“valsa”) ou instrumentos músicas ("guitarra").

Usei o livro "Obra poética", edição de 1991, sétima impressão da terceira edição, da Editora Nova Aguilar, para produzir a listagem. E, para além da listagem, farei breves comentários sobre alguns desses poemas, algumas estrofes e versos que me saltam aos olhos e vão direto ao coração e impregnam a alma.

Hoje pela manhã (04/03/2025), ao ir caminhar, pensei que poderia expandir o texto com relações e associações com o ato de cantar, a expressão artística de se expressar com música. Por exemplo, a máxima do filósofo Friedrich Nietzsche: "Sem a música a vida seria um erro". Lembrei de um trecho da letra "Música è", em italiano, cantada por Eros Ramazzotti e Andrea Bocelli: “Perché un mondo senza musica/ Non si può neanche immaginare”, mas toda a letra é uma celebração da música, desde as canções de ninar até poder expressar as dores e as alegrias do amor, da vida, da morte. 

Ou seja, música como sinônimo de vida, vida completa, vida realizada!

Meu convívio com as pessoas Surdas, que perderam a audição por “N” fatores, me fez perceber e entender que passam pela sensação auditiva de outro modo, com outros sentidos. O som é uma força mecânica que se propaga pelo ar e, dependendo da intensidade, é sentida pelos ossos (buscar por exemplo, a função da mastoide), o próprio sistema auditivo funciona pela vibração dos três menores ossos do corpo humano (martelo, bigorna e estribo).

Surdos dançam! Surdos gostam de música!

Também gosto de saber que o telefone, criado por Alexander Grahan Bell, só existe em função das pessoas Surdas. A mãe de Alexander era surda e ele também se casou com uma mulher surda. É preciso registrar que não entendiam as pessoas Surdas como uma comunidade, que tem sua própria língua (cada país ou região com sua Língua de Sinais).

Seguiam uma linha eugenista – surdo não pode casar com surdo para não procriar genes da surdez e tinham uma perspectiva corretiva – criar instrumentos, próteses e reabilitações clínicas para trazer a pessoa “deficiente” o mais próximo da “normalidade” de audição e oralidade. Daí a invenção do telefone.

No congresso de 150 anos de fundação do Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Rio de Janeiro, em setembro de 2007, tive a oportunidade de conhecer por primeira vez a cidade do Rio de Janeiro e, entre outras aventuras, na cidade e congresso, como ir até o último endereço onde Cecília Meireles viveu - em Cosme Velho. No congresso comprei o livro “Sobre o silêncio”, da jornalista Andréa Perdigão.

Andréa entrevista várias pessoas de diferentes campos de atuação e as questiona sobre o silêncio. A entrevista que mais me marcou foi com a atriz Fernanda Montenegro, em razão da concepção que a atriz tem sobre o silêncio. Basicamente, que o silêncio, em vida não existe, ainda que não haja som nenhum, a mente está funcionando, ou seja, não é silêncio.

Uma vez vi uma reportagem sobre um povoado na Índia, cujas mães, dão aos seus filhos uma canção como identidade,  não existe uma canção igual à outra. Aqui disponibilizo um link com uma reportagem da BBC Brasil, e quem não quiser ler a reportagem na íntegra, recomendo ver o vídeo com uma mãe e seu bebê no colo e ouça a mãe cantando a identidade do bebê. A vila indiana onde os nomes das pessoas são músicas

Sei também que há um outro povoado (nas Ilhas Canárias, La Gomera) na Espanha que se comunicam por assobios.

Se expandir para o reino animal a questão do canto, para além dos pássaros – como os pinguim-imperadores que cantam para encontrar o amor, outras espécies utilizam o canto como forma de comunicação e, portanto, de preservação e manutenção da existência.

Voltando à Poeta Maior, Cecília foi violinista, estudou no conservatório, queria escrever uma ópera para homenagear o apóstolo Paulo. Porém, o magistério possibilitou campo de trabalho, depois o jornalismo e, em 1929, quando ficou em segundo lugar para a cadeira de Literatura da Escola Normal do Distrito Federal (Rio de Janeiro), seguiu a vida escrevendo e publicando (entre outras ações deste ser humano ímpar). Poemas de Cecília foram e seguem sendo musicados, haja vista a construção estilística da Poeta.

Já registro aqui a ideia para um próximo texto que nasceu antes deste inclusive: uma investigação cronológica das viagens internacionais de Cecília e as produções que surgiram neste período ou sobre estas viagens.

Na listagem que produzi hoje, conforme as especificações acima, encontrei 15 poemas com o título “Canção”. O livro “Viagem” e “Mar Absoluto” têm três poemas cada um, “Dispersos” tem um e o campeão é “Retrato Natural” com oito poemas.


Canção, 88, 89, 91 (Viagem)

Canção, 237, 282, 285 (Mar Absoluto)

Canção, 329, 331, 332, 338, 340, 351, 356, 363 (Retrato Natural)

Canção, 619 (Dispersos)

 

“Chorarei quanto for preciso,

para fazer com que o mar cresça,

e o meu navio chegue ao fundo

e o meu sonho desapareça.”

(“Canção”, 4ª estrofe, p. 88)

 

“Nunca ninguém viu ninguém

que o amor pusesse tão triste.

Essa tristeza não viste,

e eu sei que ela se vê bem...

Só se aquele mesmo vento

fechou teus olhos, também...

(“Canção”, 4ª estrofe, p. 89)

 

“Eu te esperei todos os séculos,

sem desespero e sem desgosto,

e morri de infinitas mortes

guardando sempre o mesmo rosto.”

(“Canção”, 2ª estrofe, p. 91)

 

“Ouvi cantar de tristeza,

porém não me comoveu.

Para o que todos deploram,

que coragem Deus me deu!

 

Ouvi cantar de alegria.

No meu caminho parei.

Meu coração fez-se noite.

Fechei os olhos. Chorei.

 

Dizem que cantam amores.

Não quero ouvir mais cantar.

Quero silêncios de estrelas,

voz sem promessas do mar.”

(“Canção”, na íntegra, p. 237)

 

“Cada qual tem sua vida:

uns, de deserto, uns, de flor.”

(“Canção”, versos 11 e 12, p. 282)

 

“Quando o tempo em seu abraço

quebra meu corpo, e tem pena,

quanto mais me despedaço,

mais fico inteira e serena.

Por meu dom, divino faço

tudo a que Deus me condena.”

(“Canção”, 2ª estrofe, p. 285)

 

“Eras um rosto

na noite larga

de altas insônias

iluminada.

 

Serás um dia

vago retrato

de quem se diga:

‘o antepassado’.”

(“Canção”, 1ª e 2ª estrofes, p. 329)

 

“Amadores deste mundo,

nas águas vosso amor ponde;

que elas vos darão resposta,

quando ninguém responde.”

(“Canção”, última estrofe, p. 331)

 

“Quando alguém passa e ainda murmura,

abro os olhos, quase assustada.

A voz humana é absurda, obscura,

sem força para dizer nada.”

(“Canção”, 2ª estrofe, p. 332)

 

“[...]

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,

que amanhã morro e não te vejo!

 

[..]

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,

que amanhã morro e não te escuto!

[...]

Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,

que amanhã morro e não te digo...”

(“Canção”, dois últimos versos de cada estrofe, p. 338)

 

“Não por mim, mas por ti choro,

- por teu pálido momento.

Vou-te dando a vida toda,

e assim mesmo vais morrendo...”

(“Canção”, última estrofe, p. 340)

 

“Quero um dia para chorar.

Mas a vida vai tão depressa!

- e é preciso deixar contida

a tristeza, para que a vida,

que acaba quando mal começa,

tenha tempo de se acabar.”

(“Canção”, 1ª estrofe, p. 351)

 

“Se de novo passares,

não procures por mim.

Preservemos o fim

dos saudosos olhares.”

(“Canção”, 1ª estrofe, p. 356)

 

“Mais que a mão do amor,

é tépida a terra

que guarda sem guerras

a caveira e a flor.

 

Melhor que os amigos,

fala a solidão,

sem opinião

sobre o que lhe digo.

 

Sozinha me vi,

Sozinha me vejo.

Que tristes desejos

pascem mais aqui?

(“Canção”, 1ª a 3ª estrofes, p. 363)

 

“Não há esperança nenhuma em teu nome,

não há duração, firmeza, verdade,

de dura inconstância é teu nome feito

ele mesmo se apaga, ele mesmo se apaga.”

(“Canção”, última estrofe, p. 619)

 

Cecília, com a leitura desses poemas e estrofes que destaco, será que consigo enxergar/sentir um padrão? Cantas para a(s) pessoa(s) que amastes?

Aqueles poemas com “canção” mais complemento, destaco abaixo em uma tabela. Toda a listagem pode ser vista em PDF neste link.


1.      

Canção da menina antiga

Vaga Música

145

2.      

Canção excêntrica

Vaga Música

148

3.      

Canção quase inquieta

Vaga Música

148

4.      

Canção do caminho

Vaga Música

152

5.      

Canções do mundo acabado

Vaga Música

154

6.      

Canção quase melancólica

Vaga Música

155

7.      

Canção de alta noite

Vaga Música

157

8.      

Canção suspirada

Vaga Música

159

9.      

Canção mínima

Vaga Música

163

10.   

Canção nas águas

Vaga Música

174

11.   

Canção a caminho do céu

Vaga Música

180

12.   

Canção do carreiro

Vaga Música

182

13.   

Canção da tarde no campo

Vaga Música

186

14.   

Canção do deserto

Vaga Música

196

15.   

Canção para remar

Vaga Música

197

16.   

Canção dos três barcos

Vaga Música

202

17.   

Canção no meio do campo

Retrato Natural

313

18.   

Canção quase triste

Retrato Natural

317

19.   

Canção romântica às virgens loucas

Retrato Natural

327

20.   

Canção póstuma

Retrato Natural

331

21.   

Canção de um caminho da Espanha

Dispersos

607

22.   

Canção do deserto

Dispersos

610

23.   

Canção do menino que dorme

Poemas escritos na Índia

635

24.   

Canção para Sarojíni

Poemas escritos na Índia

656

25.   

Cançãozinha para Tagore

Poemas escritos na Índia

663

26.   

Cançãozinha para Haiderabade

Poemas escritos na Índia

665

27.   

Canção do amor-perfeito

Retrato Natural

330

28.   

Canção do amor-perfeito

Retrato Natural

340

29.   

Canção da indiazinha

Crônica Trovada

738

30.   

Canção do Canindé

Crônica Trovada

739

 

E na última tabela abaixo, os demais poemas com títulos relacionados à “canção”, sinônimos ou palavras afins:

1.      

A doce canção

Vaga Música

156

2.      

A última cantiga

Viagem

086

3.      

A vizinha canta

Vaga Música

163

4.      

Acalanto

Mar Absoluto

285

5.      

Ária

Retrato Natural

353

6.      

Assovio

Viagem

128

7.      

Balada das dez bailarinas do cassino

Retrato Natural

324

8.      

Balada de Ouro Preto

Retrato Natural

343

9.      

Balada do soldado Batista

Mar Absoluto

248

10.   

Cantar

Viagem

120

11.   

Cantar de vero amor

Dispersos

621

12.   

Cantar guaiado

Mar Absoluto

282

13.   

Cantar saudoso

Mar Absoluto

271

14.   

Cantarão os galos

Retrato Natural

317

15.   

Cantata da cidade do Rio de Janeiro

Dispersos

622

16.   

Cantata matinal

Retrato Natural

314

17.   

Cantata vesperal

Retrato Natural

322

18.   

Cantiga

Viagem

115

19.   

Cantiga

Viagem

131

20.   

Cantiga

Viagem

133

21.   

Cantiga do véu fatal

Vaga Música

168

22.   

Cantiguinha

Vaga Música

204

23.   

Cantiguinha

Viagem

096

24.   

Canto

Dispersos

617

25.   

Canto aos bordadores de Cachemir

Poemas escritos na Índia

673

26.   

Canto da Acauã

Crônica Trovada

739

27.   

Chorinho

Vaga Música

198

28.   

Doce cantar

Mar Absoluto

246

29.   

Embalo da canção

Vaga Música

158

30.   

Interlúdio

Vaga Música

183

31.   

Madrigal da sombra

Vaga Música

186

32.   

Melodia para cravo

Retrato Natural

316

33.   

Motivo

Viagem

081

34.   

Música

Poemas escritos na Índia

653

35.   

Música

Vaga Música

147

36.   

Música

Viagem

084

37.   

Pequena canção

Vaga Música

163

38.   

Pequena canção da onda

Vaga Música

145

39.   

Ritmo

Vaga Música

143

40.   

Serenata

Retrato Natural

326

41.   

Serenata

Viagem

085

42.   

Serenata

Viagem

113

43.   

Serenata ao menino do hospital

Vaga Música

169

44.   

Som

Viagem

099

45.   

Som da Índia

Poemas escritos na Índia

633

46.   

Tardio canto

Vaga Música

167


Encerro aqui o texto e meu árduo trabalho de hoje. Como disse em outro momento, Cecília me leva à excelência, me “obriga” a ser melhor. Pesquisei muitas palavras. Conheci um pouco a fantástica história de Sarojíni, primeira mulher presidente do congresso indiano, por conta do poema “Canção a Sarojíni”, inclusive, “Cançãozinha a Haiderabade” é a cidade de origem desta mulher histórica. Quanto aprendizado!

Sarojíni Naidu (Fonte: Wikipedia)

       

        Porém, ainda voltarei a estas tabelas e lerei/relerei cada poema listado, e, claro, elevar meu vocabulário e conhecimento, pois Cecília segue sendo professora. Cecília me emociona! Suas palavras, construções de imagens me arrebatam!

Bem, espero não ser uma voz solitária no deserto. Se você, leitora, leitor, chegou até aqui, agradeço e te convido a ler os poemas, as crônicas, tudo que Cecília produziu.

Merci beaucoup!