O Quarto do Menino

"No meu quarto que eu lia, escrevia, desenhava, pintava, imaginava mil projetos, criava outros mil objetos... Por isso, recebi o apelido de 'Menino do Quarto', título que adotei como pseudônimo e hoje, compartilho neste 'Quarto Virtual do Menino', o que normalmente ainda é gerado em meu próprio quarto". Bem, esse início já é passado; o 'menino' se casou (set/2008); há agora dois quartos, o do casal e o da bagunça... Assim, diretamente do quarto da bagunça, entrem e fiquem a vontade! Sobre a imagem de fundo: A primeira é uma reprodução do quadro "O Quarto" de Vicent Van Gogh; a segunda, é uma releitura que encontrei no site http://www.computerarts.com.br/index.php?cat_id=369. Esta longe de ser o MEU quarto da bagunça, mas em 2007, há um post em que cito o quadro de Van Gogh. Como disse, nada mais propício!!!... Passaram-se mais alguns anos, e o quarto da bagunça, já não é mais da bagunça... é o Quarto do Lorenzo, nosso primogênito, que nasceu em dezembro de 2010!

domingo, outubro 20, 2024

UM COPO DE VINHO

Publicado originalmente no Facebook, em 20 de outubro de 2020:

Venho por meio da minha rede social informar a todos quantos interessar possa que:

Não sou mais o mesmo André da década de 1980, nem de 1990, 2000, 2010, muito menos de janeiro, fevereiro, março de 2020. Menos ainda de setembro, outubro, de ontem, de agora pouco.

Isso implica dizer que a mudança é constante, perene. Sou resultado inacabado das múltiplas influências externas que, passando ou não pelos filtros internos e, ora tendo êxito esses filtros, ora não, sendo, portanto, modificado constantemente. Isso não é ruim, pelo contrário (a metamorfose ambulante).

Uma música nova, um concerto, um texto literário, um poema, um texto acadêmico, a preparação de uma prova, novas ferramentas e tecnologias. Terminei de ler o texto de Edgar Morin "Da necessidade de um pensamento complexo", para a aula de amanhã.

Sim, voltei a ser aluno, depois de quase oito anos que terminei o doutorado (Ciência da Informação). Pretendo fazer o segundo (Doutorado em Educação). Entretanto, estou me deleitando no aqui e agora, a condição de aluno especial na disciplina sobre Complexidade e Pensamento Sistêmico, com a querida Profa. Carla Blum Vestena

Leiam esse pequeno trecho do texto e digam se não é de iluminar e explodir a cabeça (no mais maravilhoso sentido de explosão da cabeça, claro):

"[...] sabemos que todos os progressos adquiridos podem ser destruídos pelos nossos inimigos mais implacáveis: nós mesmos, dado que hoje a humanidade é a maior inimiga da humanidade.

Sabemos, atualmente, que o progresso deve ser regenerado; sabemos ainda que a barbárie constitui uma ameaça, e vivemos mais do que nunca na incerteza, porque ninguém pode adivinhar o que será o dia de amanhã.

O nosso destino é, pois, incerto, e ninguém sabe qual o destino do Cosmos.

Devemos, porém, nos situar-nos nesta incerteza. A nossa situação é, em virtude desta constatação, extremamente complexa, porque somos integralmente filhos do Cosmos e estranhos a esse mesmo Cosmos.

[...] Se pegarem um copo de vinho do Porto e o interrogarem, podem ter certeza de que nesse vinho do Porto há partículas que se formaram nos primeiros segundos do Universo, ou seja, há cerca de sete a quinze milhões de anos; há também o hidrogênio, um dos primeiros elementos a ser formado no Universo, e produtos do átomo do carbono, formado quando da existência do sol anterior ao nosso.

No copo de vinho do Porto, há a conjugação de macromoléculas que se juntaram na terra para dar origem à vida e há ainda a evolução do mundo vegetal, a evolução animal, até o homem, e a evolução técnica que permitiu ao ser humano extrair o sumo da uva e transformá-lo, através da fermentação, em vinho.

Hoje, existem técnicas mais evoluídas, mais sofisticadas, da informática, que permitem controlar, nos depósitos, a fermentação desse vinho que vai transformar-se em vinho do Porto.

Dito de outra maneira, num copo de vinho do Porto temos toda a história do Cosmos e, simultaneamente, a originalidade de uma bebida encontrada apenas na região do Douro."

Um copo de vinho do Porto! Tim tim!

Junto com as preocupações do dia, teve Exame de Suficiência da disciplina de Libras para um aluno, teve limpeza geral das pesadas na casa, teve atividade remota do Benjamin, teve a emoção de "Benedictus" por Karl Jenkins, teve Clarice, interações nos grupos de Whatsapp, disputa pelo primeiro lugar no Duolingo, teve o texto de Morin e tantas outras teias desse tecido complexo que é a vida...

Só na leitura do texto, fiz tantas viagens e links com outros textos lidos, literatura, filmes, experiências vividas com outras pessoas, sozinho... Alguns comentários que escrevi no texto:

"Queria fazer fotossíntese"; "Filme 'Nell", com Jodie Foster"; "Helen Keller, filósofa 'surda, muda e cega'"; "'[...] que o homem é o único ser vivo que acredita existir uma vida após a morte' e que é consciente dessa vida para a morte"; " e os 'sentimentos' dos elefantes quando um membro da manada morre?"; "Prometeu (o que olha para o futuro), Epimeteu (o que olha para o passado)"; "Filme 'Dr. Estranho' (o melhor neurocirurgião, impávido, perdeu o posto e teve que reaprender, foi moído, refeito e passou a não apenas ver o mundo de outro modo, mas a ver além, o multiuniverso"; "Sempre amei a ideia de 'pessoa enciclopédica': aquela capaz de falar de tudo, ainda que um pequeno verbete"; "Especialistas me assustam e me cansam, principalmente, os rígidos, inflexíveis"; "'Como adquirir a possibilidade de articular e organizar as informações sobre o mundo'"; "A fome na China, come-se animais exóticos, governo 'regula' esse mercado exótico, novos vírus, ex.: coronavírus"; "Complexus: o que se tece junto"; "'O paradigma da complexidade une enquanto distingue'"...

Eu poderia fazer outros tantos apontamentos e espero fazê-lo amanhã, na discussão e reflexão conjunta com os colegas de turma.

De novo, um copo de vinho do Porto. Tim tim!

domingo, maio 05, 2024

AVE MARIA

 



Esta não é a minha primeira produção escrita sobre Maria – e, não será a última. Desde que a conheci nos idos de 2002, na condição de aluno no segundo ano da graduação, Maria foi minha professora, na disciplina Didática II.

Naquele contexto, causou um frisson na turma de Pedagogia – ou a amavam, ou a odiavam! (A inteligência aliada a organização, clareza e autoconfiança, assusta!). Para mim, foi fascínio. “És fascinação!”. Como conclusão da disciplina, a professora pediu um texto acadêmico, no qual devíamos relatar nossa trajetória escolar.

Escrevi em meu blog, em 2005: “’Da pré-escola ao curso superior: entre o século XX e XXI’, texto apresentado à disciplina Didática II, ministrada pela Profa. Dra. Maria do Rosário Longo Mortatti, novembro de 2002” e sobre a professora, registrei: “um encanto de pessoa, pois respira e exala literatura”.

Numas das aulas na disciplina da pós-graduação, em 2006, num ato de coragem, eu pedi para ler “Sugestão”, poema de Cecília Meireles, pois Maria nos inspira a esquecer a timidez por um instante e espalhar poesia.

Em outubro de 2021, escrevi um texto sobre minhas percepções de leitura dos livros: “Mulher emudecida” e “Mulher umedecida”. Foram leituras impactantes, pois tive a oportunidade de humanizar a professora, figura sobre-humana, mas que ainda causa fascinação.

Nestes últimos anos – 2021 a 2024, Maria lançou livros de poesia, crônicas, ensaios e o objetivo principal deste texto é tecer algumas considerações sobre a leitura do livro “Prosa de leitora: sobre livros, autores e outros acepipes, volume 1”.

Minhas considerações sobre o conteúdo são as melhores: nomes, datas, fatos, percepções da autora-leitora. Um verdadeiro banquete, muito mais que um “acepipe” (aprendi o significado por conta do livro de Maria).

Aqui, tento seguir a fórmula de Maria, produzir uma prosa de leitor, o que a leitura de seus ensaios me provocou. Autores e histórias que já conhecia e Maria confirma alguns dados e percepções. Ainda sobre estes, apresenta novas informações que funcionam como luminárias possibilitando novos modos de ver/sentir este ou aquele autor, esta ou aquela história.

Ler a prosa de Maria, leitora profícua e incansável, produz conexões com nossas próprias vivências e leituras. Uma dessas conexões foi com um trecho de Bernardo Soares, do “Livro do Desassossego”, que muito me impressiona pela clareza e, consigo vincular a essência deste trecho com Maria e suas produções, todas!

O trecho é o que segue: “Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale [...]”. Maria diz! Maria sabe dizer! Maria sabe existir pela voz escrita e pela imagem intelectual: textos acadêmicos-científicos, prosas, ensaios, poemas e, tem construído firmemente sua herança – para a eternidade, de modo brilhante.

 

Deus me deu a palavra,

não uma palavra qualquer,

mas aquela potente arma alquímica

que fere, destrói, mata pessoas

e ilumina, preserva e pereniza paisagens

 

“Mulher qualquer, mulher” (2024), de Maria Mortatti, poema “A palavra”, (p. 76). Ah, esses versos! Como escrevi: passaram a habitar meu interior. Os versos e o poema todo, confirma: Maria sabe dizer! Com a palavra, Maria pereniza paisagens! E soube fazê-lo de cada autor, livro, história, nos ensaios em “Prosa de leitora”.

Gosto da organização, por exemplo, as datas ao final de cada texto (dd/mm/aaaa), pois, como nos anuncia, foram escritos para seu blog. E muitos dos textos foram motivados exatamente pelo calendário: “Os três de abril de 1616: Shakespeare, Cervantes e Inca”, versa sobre o Dia Mundial do Livro e foi escrito em 23.4.2023, dia em que estes três gigantes faleceram (no ano de 1616). “Bom dia, Lygia!”, escrito no primeiro ano de falecimento de Lygia Fagundes Telles (03.4.2023). Ou ainda, “Júlia Lopes de Almeida e a Cadeira 41 da ABL”, escrito em 30.5.2023, quando a autora homenageada faleceu em 30.5.1934.

Sobre Júlia, há uma crônica escrita por Cecília Meireles, em 1962, no livro “Escolha o seu sonho” (1972), em razão do centenário de aniversário de Dona Júlia (24.9.1862). Não é fascinante como os textos bem escritos e bem lidos relacionam-se e retroalimentam-se? Cecília Meireles, também foi tema dos ensaios de Maria, e citada em outros, como amiga de Gabriela Mistral, além dos versos de Cecília, abrirem o presente livro: “Teu bom pensamento longínquo me emociona./ Tu, que apenas me leste,/ acreditaste em mim, e me entendeste profundamente”.

Preciso registrar para a posteridade, ainda que este dado não seja relevante, mas foi significativo para mim, saber da homossexualidade de Gabriela Mistral, amiga de Cecília. Só fez minha admiração por Cecília crescer.

Como não amar as conexões de quem escreve e de quem lê, por exemplo, com o ensaio: “Uma história de dicionários: do ‘Capelino’ ao ‘Aurélio’”. Maria inicia o texto: “Não sou lexicógrafa, mas gosto muito de dicionários de vários tipos: gerais, temáticos, analógicos, etimológicos, bilíngues, plurilíngues, entre outros”.

Assim, associar este ensaio com a crônica “O livro da solidão”, de Cecília Meireles: “Não sei se muita gente haverá reparado nisso - mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo”.

Eu mesmo, semelhante amante de dicionários, tive a ousadia de escrever o poema “O menino que amava dicionários”, sendo o título, o único verso, pois o corpo do poema se transforma em verbetes: “amava, dicionário, o, menino, que”.

Poderia redigir comentários sobre cada um dos 54 ensaios e registrar as reverberações produzidas em mim, amante da Literatura e do objeto Livro, leitor de Cecília, Clarice, Umberto, Adriane, Maria.

Em outro momento de coragem, em 06 de novembro de 2020, aniversário de Maria, escrevi um “poema-presente/’, como ela mesmo chamou:

 

MARIA SEIS DO ONZE

 

Perigosa escorpiana

Sereia de canto ardil

A conheci unespiana

Aluno quase infantil.

 

Seu canto é literatura

Palavra é seu veneno

Elevado sou às alturas

Extasiado, feliz e sereno.

 

Palavras e canções ao cantil

Salve, salve tanta sagacidade

Escritora, poeta e outras mil

Saúde! Paz! Muitas felicidades!

 

André Coneglian

Londrina-PR, 06/11/2020

 

A título de conclusão deste pequeno texto, faço um apelo:

Leiam Maria! A que diz (escreve). A que sabe dizer e existir pela voz escrita e imagem intelectual.

Ave Maria!

 

5.5.2024

sábado, dezembro 23, 2023

MEU AMIGO ALÊ

 "Vocês me dão licença, vou me recolher..."

Estas foram as últimas palavras que ouvimos do amigo Alessandro.

Dia 22/11 [2023] recebemos a notícia de que ele estava com "câncer terminal".

Dia 24/11 [2023] a noite fomos visitá-lo em sua casa. Quando chegamos, ele estava dormindo. Ficamos conversando com Cleide, sua esposa e com Bia, irmã da Cleide.

Passados uns 40 minutos, Cleide o ajudou a levantar, para tomar remédio e ele veio caminhando do quarto para a sala.

Estava com uma crise de soluço há alguns dias...

Trocamos algumas palavras. Ele estava fisicamente debilitado, psicológica e emocionalmente abalado. Tomou o remédio e disse estas palavras para Paula e para mim: "Vocês me dão licença... preciso me recolher..." e voltou para o quarto.

Nove dias depois, Alê recolheu-se! Recolheu-se desta vida que conhecemos e que chamamos de "realidade". Cleide publicou em suas redes sociais, minutos depois dele partir: "Deus me deu, Deus tomou. Bendito seja o nome do Senhor", era o domingo 03/12 [2023].

No velório, ouvi: "ao menos não foram longos meses sofrendo..."

Uma pessoa boníssima. Realmente, não merecia qualquer tipo de sofrimento.

Descansou. Recolheu-se!

O grande problema, como sempre nestes casos, é de quem fica nesta realidade com a dor da ausência. A esposa, agora viúva, a filha, agora órfã de pai, os pais idosos que perderam o primogênito, irmão, sobrinhos, cunhados, concunhados, amigos do trabalho, da igreja, da vida...

A bíblia cristã, a qual tive como livro sagrado por quatro décadas, duas delas como cristão evangélico, registra que melhor é ir numa casa em luto que numa festa "pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério", diz a continuação.

Devo discordar educada e respeitosamente.

Vivos devem viver. Viver intensamente, se assim o desejarem e tiverem saúde e condições para fazer. Ir a uma casa em luto, em respeito à dor dos que ficaram. Recolher-se quando sentir que é preciso, quando for necessário. O mundo já é cheio de restrições e dificuldades naturais. Não se pode deixar de fazer isto ou aquilo com medo do que vão pensar ou dizer. "Vamos nos permitir", pois um dia iremos nos recolher deste mundo.

Vamos amar! Semear amor, plantar amor, colher e recolher amor. Espalhar mais amor!

É preciso "festar" se tem desejo e possibilidade de fazê-lo, como escrevi. É preciso estar com aqueles e aquelas que colaboram com esta festa.

Cecília Meireles escreveu num contexto de desarmamento, de cultura de paz que: "Se fosse possível não ensinar a matar, - uma vez que para morrer todos nascemos já ensinados...". Desse modo, é preciso viver e festejar a vida! Pois a humanidade nasceu para morrer.

Triste fato! Nós, os vivos da vez, que lutemos para dar conta das ausências de pessoas queridas que já foram...



CARTA A CECÍLIA MEIRELES POR OCASIÃO DE SEU 122º ANIVERSÁRIO

Londrina-PR, 07 de novembro de 2023.

 


Querida Cecília,

         Escrevo esta carta, no dia do seu aniversário de 122 anos, para te dizer que pedi essa atividade para meus alunos do 5º Ano A, do reforço, da Escola Municipal Prof. Carlos Zewe Coimbra. Primeiro, eles escreveram um pequeno texto no caderno deles com sua biografia.

Desde que comecei como professor desta turma, eles foram informados do meu amor por você e por tudo o que você escreveu; eles conheceram alguns poemas do maravilhoso “Ou isto ou aquilo” e também outros poemas de outros livros.

Eu te conheci, conscientemente, aos 19 anos no ano de 2000, quando comprei o livro “Crônicas de Viagem, vol. 1”, ou seja, conheci primeiro sua prosa, só depois seus poemas.

Mas a verdade é que eu já tinha um livro seu de poemas na minha estante, uma antologia feita por sua filha caçula, Maria Fernanda. O livro era da biblioteca da escola onde estudei o Ensino Médio. Por algum motivo, o livro não voltou para a biblioteca e fará quase 30 anos que o livro está comigo.

Em 2007, quando fui pela primeira vez ao Rio de Janeiro, um dos meus objetivos principais da viagem era ir até o seu endereço, o último onde morou, Rua Smith de Vasconcelos, nº 30, no bairro de Cosme Velho.

Eu acreditei, de modo pueril, que, ao chegar na casa, alguém me recepcionaria e que me apresentaria e eu teria a oportunidade de conhecer o seu lar. Claro que isso não aconteceu. Tirei algumas fotos com uma câmera digital, fui embora meio triste, meio alegre.

Eu agradeço ao Universo por ter me apresentado a você e suas obras. Amo tudo, exatamente tudo o que você escreveu, o que já li e o que ainda não li, mas lerei um dia e tenho certeza que vou amar.

“Arte de ser feliz" e "História de Bem-te-vi” são as primeiras crônicas que tenho lembrança de ler e gravar em minha memória (depois de crónicas de viagem). Também gosto muito das crônicas “A 500 metros”, “Fim do mundo” e “Brinquedos incendiados”, mas como já escrevi, gosto de tudo o que você escreveu.

Os seus poemas italianos me fascinam e “Sugestão" é um poema que me marcou profundamente – “sede assim qualquer coisa,/ isenta, serena, fiel/ /não como o resto dos homens”. Também o poema “Reinvenção”, os versos, “a vida, a vida, a vida,/ mas a vida, só é possível reinventada”. Porém, você já sabe, amo tudo, tudo, tudo o que você escreveu.

Bem, para não me alongar muito, vou finalizar por aqui, feliz por poder comemorar seu aniversário de 122 anos hoje e de saber que você estará comigo todos dias aqui na Terra até o dia que em que eu virar poeira.

Muito obrigado por tudo!

 

André, seu leitor... 

domingo, outubro 08, 2023

"A BANDEJA DE SALOMÉ", DE ADRIANE GARCIA: NOTAS DE UM "JOVEM" ATEU

Farei igual ao Jack [Estripador]: vamos por partes!

1º) Não sou tão jovem de idade cronológica: nasci em janeiro de 1981, portanto, estou com 42 anos nesta data. Quando mais jovem, pensava, parecia e agia como um velho ranzinza. Fui melhorando ao longo dos anos, acredito. Um outro curioso caso de Benjamin Button, mas de pensamento, modo de entender, habitar e agir no mundo. Este mundo injusto e cruel!

2º) Sou um jovem ateu! Como eu cri no deus cristão, primeiro como católico - dos 9 aos 18 anos, depois como protestante - dos 18 aos 38, estou ateu no deus cristão e, por desconfiança, em qualquer outra divindade. Talvez, de modo poético, creio em Pachamama, ou adorarei crer - poeticamente - numa divindade que não exige nada, não prometa nada. Talvez, ainda, deva existir - poeticamente, uma Energia que nossa pequenez humana não pode dar conta, não consegue captar/capturar e portanto, não pode dar nome, nem nada...!

3º) As minhas notas sobre o livro "A bandeja de Salomé" são reflexos (reflexões) e reverberações que a leitura - minha, interior e pessoal, de poemas tão potentes causaram neste leitor, ex-cristão, crítico da vida e não de Literatura. Não tenho know how para nada, a verdade é essa!

Minha história com o cristianismo é cheia de peripécias. Meus avós maternos foram cristãos evangélicos pentecostais desde que me entendo por gente. Ternos, vestidos, bíblias debaixo dos braços, cultos fervorosos, orações em línguas estranhas. Na infância, a casa dos avós não tinha nem TV - caixa do demônio! Minha mãe fazia parte da orquestra da igreja, entretanto, sofreu punições por ter casado grávida (eu era o bebê). Com todos os traumas possíveis, dos julgamentos dos pais, dos "irmãos" na fé, minha mãe preferiu não ser fiel a nenhuma igreja. Seguiu a fé no deus cristão do seu modo particular, de casa.

Meu pai, avó e tios paternos, eram/são todos católicos apostólicos romanos por tradição, convicção ou comodismo. Na infância, tinha primos fervorosos, que moravam próximos de nós, assim, eu expressei o desejo de começar a frequentar a catequese para a primeira comunhão e tentei seguir o ritual - mesmo não me encaixando (não adorei a Virgem Maria, não fui devoto de nenhum santo católico, odiava me confessar ao padre e só o fiz duas vezes por obrigação aos rituais), até meus 18 anos.

Quando fui convencido - por minhas histerias, medos e crenças limitantes da época, que só havia uma única "religião" correta: a que pratica o fã clube de Jesus. Foram longos 20 anos, em três igrejas protestantes (duas em Marília-SP e uma aqui em Londrina-PR). O problema dessa galera é querer converter todo mundo para seu clubinho, apontando que o jeito de ser, habitar e agir no mundo das pessoas diferentes deles é errado, pecaminoso, blá, blá, blá... Eles são os carnívoros da "cadeia alimentar religiosa". Triste constatação, mas contra fatos não há argumentos!

Óbvio que nessa trajetória do protestantismo conheci pessoas incríveis, tive experiências maravilhosas, mas como aconselhou o chato do apóstolo Paulo é preciso "reter o que é bom".

Desse modo, os personagens dos poemas de Adriane Garcia, me são familiares, como para qualquer cristão que lê e estuda a bíblia. Infelizmente, esses "crentes fervorosos" não terão coragem de enfrentar a leitura dos poemas de Adriane. Se o fizerem, será apenas para reforçar que a poeta é uma blasfemadora.

Capa do Livro

Orelha do livro

Amei cada poema! Vibrei ao encontrar toda referência ao deus todo poderoso, assim mesmo, em minúsculo: deus. E, todo horror causado por ele ou em nome dele, ganhar uma lente de aumento ou foco a partir do ponto de vista das vítimas, especialmente das mulheres.

Citaria todos os poemas - aliás, senti falta no livro de um sumário com os títulos e suas respectivas páginas - mas isso é perfumaria. Sem contar, que é uma edição bilíngue - Português/Espanhol, com tradução de Manuel Barrós, um jovem peruano que também traduz Cecília Meireles - sempre ela, Deusa! - para sua língua materna. Como não vou citar todos os poemas, leiam o livro!

Vou tecer alguns comentários sobre aqueles que me chocaram! O primeiro, que conheci, inclusive, no pré-lançamento do livro, ano passado, por meio das redes sociais de Adriane, é "A metáfora de Agar", ou seja, a poeta resgata a história de Abrão, Sarai e a serva estrangeira, história que sabemos, nasce o conflito entre Ismael e Israel - cada qual entendendo que são o filho da promessa desse deus maluco. Escrevo um dia depois de novos conflitos entre palestinos e israelenses.

"Tudo são metáforas./ Mas onde encaixamos o estupro?" Adriane encerra o poema com esta pergunta que pode encerrar tantas outras histórias bíblicas ou não bíblicas de mulheres. Por exemplo "O testemunho das filhas de Ló", acusadas no relato bíblico de terem "coabitado" com o pai, relação incestuosa da qual nascem dois descendentes e, consequentemente, dois povos, inimigos dos israelitas: moabitas e amonitas.

"A cor dos olhos de Lia", a irmã "feia" e vesga de Raquel, quem Jacó amava de verdade, mas submeteu-se aos anseios gananciosos de Labão, pai de ambas. Enfim, essa novela mexicana, da qual descendem as doze tribos de Jacó, com quatro mulheres diferentes - Lia, Raquel e suas servas. Como a gente naturaliza esses procedimentos todos, no sentido, eram práticas da época, culturais, blá, blá, blá... Viva Adriane, que nos presenteia com outra perspectiva.

"A razão de Raabe", prostituta de Jericó, que sobreviveu à queda da muralha de Jericó, salvando sua família e entrando para a genealogia de Jesus. Que reviravolta, Adriane! Meu queixo caiu com o desfecho desse poema!

A tocante história - não deixa de ser - de Rute e Noemi, porém, revisitada, recontada pela própria Rute. "O nojo de Betsabé", aquela que Davi cobiçou e tomou, do soldado que depois morreu. Junto com um poema anterior "O espelho de Mical", ambos poemas demonstram como a maioria dos homens cis-héteros, se relacionam com o "sexo oposto". Só isso, sexo, mas amam outros homens!

"A confissão da outra mãe", poema que reescreve a disputa das duas mães resolvida pelo "sábio" rei Salomão, sobre o bebê que a OUTRA mãe roubou em função da morte do seu bebê. Foi um verdadeiro "plot twist"!

"O método da mulher de Ló", meu senhor da goiabeira, que CHO-CAN-TE e TO-CAN-TE, ao mesmo tempo e te leva a pensar em tantos modos de tirar a própria vida, por não suportar mais a opressão desse mundo - repitam comigo: injusto e cruel, especialmente com mulheres e crianças.

"O ódio de Herodias", "A palavra de Maria", "A generosidade da boa samaritana" e todos, encerrados com o poema que dá título ao livro: "A bandeja de Salomé". Mesmo que de modo literário, é satisfatório, ver que na bandeja de Salomé estão tantas cabeças, que usaram poder, influência, sobrenome, status social para oprimir mulheres, crianças e outros vulneráveis.

Eu, jovem ateu, encerro, as notas desta leitura impactante, de uma poeta contemporânea, cujo primeiro livro que li, em forma de e-book, "Estive no fim do mundo e me lembrei de você", poesia pura no título - que título é esse? Enfim, Adriane, tem a capacidade de me impactar com seu modo de entender, habitar e agir no mundo, este mundo injusto e cruel, que castiga a TODOS, mas fere mortalmente os que SENTEM!

segunda-feira, setembro 18, 2023

SOBRE "CÂNDIDO OU O OTIMISMO"

 Terminei de ler hoje (18/09/2023), o "Cândido ou o Otimismo", de Voltaire, depois de descobrir que eu tinha uma linda edição de 1983, com tradução de ninguém mais, ninguém menos de Mário Quintana, em minha estante pessoal (Voltaire - Contos, foto abaixo). Foi a amiga - hermana - Sílvia Brandão que me falou sobre este texto quando ambos habitávamos o "mundo invertido" em que fomos parar em maio de 2022.





É provável que nossa conversa versava sobre a positividade tóxica que permeia muitos dos nossos ambientes, seja por meio dos coaches ou de líderes "espirituais". Lembro-me de ficar com o nome de "Pangloss" gravado na memória dessa conversa e, é, segundo o texto altamente irônico e "improvável" de Voltaire, o filósofo com o qual Cândido confia seu modo de existir no mundo e enfrentar as tremendas dificuldades pelas quais passa até finalmente resolver seu maior dilema, com sua amada Cunegundes.





Entre tantos fatos e acontecimentos de lá para cá - da indicação da hermana Sílvia para eu encerrar a leitura, as muitas conexões cerebrais, na mudança de casa para o apartamento, veio um clique: tenho um livro de Voltaire na minha estante... quem sabe, por um lance de sorte, não esteja neste livro o "Cândido". Bingo!




É estranha a sensação de ler um texto escrito no século XVIII e, nesta edição que tenho, traz um texto introdutório com informações sobre o contexto em que foi escrito, o que favorece uma leitura mais significativa ou com detalhes que fazem a diferença no entendimento geral da obra.

Eu teria mil considerações sobre a experiência de leitura e seu conteúdo especialmente neste meu tempo de descrença em deus cristão ou qualquer outra divindade. Escrevo este texto um dia após receber a triste notícia do falecimento do meu tio e padrinho, Élio, irmão de meu pai. Mais chocante foi saber as circunstâncias em que foi encontrado. Escreverei outro texto sobre meu padrinho, em momento oportuno, um modo de tentar elaborar o luto.

Neste texto, o intuito é mostrar um único trecho do livro e a relação que fiz com um poema de Manuel Bandeira, que já postei duas ou três vezes nas minhas redes sociais, desde que o conheci. O trecho do livro é o que segue:

XII

Continuação das desgraças da velha

[...] Envelheci na miséria e no opróbrio, não tendo mais que a metade do traseiro, e sempre a lembrar-me de que era filha de um papa; cem vezes quis matar-me, mas ainda amava a vida. Essa ridícula fraqueza é talvez um dos nossos pendores mais funestos: pois haverá coisa mais tola do que carregar continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra? Ter horror à própria existência e apegar-se a ela? Acariciar, enfim, a serpente que nos devora, até que nos haja engolido o coração?" (p. 178).


É extremamente forte essa "imagem" sobre existir, especialmente, a existência de pessoas que padecem, sofrem, do início ao fim da vida neste plano (crueldade maior se existir outros planos!). Destaco o verbo "apegar-se" que se conecta direta e certeiramente com o poema "A vida assim nos afeiçoa" (Manuel Bandeira). Apegar-se à existência! Afeiçoar-se à vida! Destaco a primeira e última estrofe do referido poema:

Se fosse dor tudo na vida,/ Seria a morte o grande bem./ Libertadora apetecida,/ A alma dir-lhe-ia, ansiosa: 'Vem!

[...]

A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel...


Como escrevi acima, teria mil considerações sobre o texto de 1758/1759, repleto de reviravoltas - plot twist, diriam os mais novos, como aprendi, com os meus alunos universitários de outrora e acontecimentos mirabolantes. O final inesperado - pois em meu interior já tinha criado mil e uma finalizações drásticas, levando em consideração todo o enredo. Entretanto, o final ainda que inesperado, foi adequado, talvez.

Disse que citaria apenas um trecho - pois somos TODOS, SEM EXCEÇÃO, seres contraditórios - mas não quero finalizar o meu texto sem falar sobre o final de Cândido e à "conclusão" que seus companheiros e empregados chegam, inclusive Pangloss:

" - Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim.

- Tens razão - disse Pangloss -, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum*, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.

- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho; - é a única maneira de tornar a vida suportável." (p. 235/236).

E cá estou eu, fazendo o quê? Praticando filosofia barata...

P.s: em tempo: Pangloss vai tomar no c*

-----------------------------------------------

* Latim ut operaretur eum: para servir


segunda-feira, janeiro 30, 2023

A SEDE SEM CURA: O GENOCÍDIO DOS YANOMAMIS

Quando tudo ou quase tudo nos afeta, como não sucumbir diante das atrocidades que foram cometidas pelos homens, como o Holocausto de mais de 6 milhões de judeus e as que seguem ocorrendo, como o genocídio dos Yanomamis?

"O mundo é de quem NÃO sente", escreveu Fernando Pessoa. Eu insisto em perguntar: e eu que sinto MUITO? Onde é o meu lugar? Sem nenhum ópio para acalmar ou proporcionar um fuga temporária desse suplício, desse martírio, desse inferno que é este mundo...

Todas as manhãs nestas férias, ao acordar e realizar meu ritual - banho, preparar o café, tomá-lo - venho para meu pequeno escritório, ligo o computador, ouço Nina Simone, Andrea Bocelli, Shakira, Aurora, The Cranberries, Whitney Houston e tantos outros... e abro o meu presente de Natal: "Obra Poética", de Cecília Meireles e, como uma bíblia, vou lendo e refletindo.

Quinta ou sexta-feira, cheguei ao Romanceiro da Inconfidência, obra monumental, lançada em 1953. Cecília Meireles, definitivamente foi uma superdotada, "comprometida com a tarefa", "habilidades acima da média" e "criatividade" a mil por hora (a la conceituação básica de superdotação, Teoria dos Três Anéis, de Joseph Renzulli).

Escrever em versos, agrupados por romances, a história da inconfidência mineira e seus desdobramentos, é, de fato, uma obra grandiosa. Cecília escreveu sobre seu processo de criação e escrita do Romanceiro:

"A duzentos anos de distância, embora ainda velados muitos pormenores desse fantástico enredo, sente-se a imprescindibilidade daqueles encontros, de raças e homens; do nascimento do ouro; da grandeza e decadência das Minas; desses gráficos tão bem traçados de ambição que cresce e da humanidade que declina; a imprescindibilidade das lágrimas e exílios, da humilhação do abandono amargo, da morte afrontosa – a imprescindibilidade das vítimas, para a definitiva execração dos tiranos. E para que, no fim da partida – como em todas as parábolas – neste dialogo do céu com a terra, fossem obscurecidas para sempre as glórias efêmeras, e, por toda a eternidade, exaltados e glorificados os que padeceram opressão e martírio…"

Fonte: clique aqui

Bem, faço essa introdução apenas para explicar como as tragédias se repetem. Mudam-se circunstâncias, lugares, épocas, entretanto, há os que causam dor, flagelos e mortes e os que sofrem tudo isso... As vítimas atuais (?) são os Yanomamis. Os algozes, pode parecer que são os financiadores dos garimpos ilegais, porém, os piores são aqueles que tinham poder para evitar, mas não só se omitiram, como incentivaram os garimpos e a dizimação dos Yanomamis. 

Todos os que votaram e defenderam - e continuam defendendo bolnossauro e seus asseclas, têm sangue Yanomami nas mãos, mais de 500 crianças só neste período dos últimos três a quatro anos. O meu ódio a essas pessoas, como damares - a louca da goiabeira, menino veste azul, menina veste rosa, infelizmente não muda os fatos... Até desejamos ter superpoderes para explodir a cabeça deles, como aquela guria da série de uma temporada só, que a Netflix deixou a gente passando vontade por não dar continuidade...

As lágrimas que chorei ontem (29/01/2023) assistindo à reportagem da Sônia Bridi no Fantástico não significam um milésimo de nada em toda essa tragédia... É como assistir ao inferno em pleno funcionamento e você só tem a impotência te enforcando...

Pois bem, escrevo esse texto para nada também... apenas para diminuir a febre de sentir, como prescreveu Fernando Pessoa. Escrevo para registrar a analogia dos primeiros romances da obra fenomenal de Cecília, da extração desenfreada em Minas com os garimpos ilegais em Roraima.

O título deste texto é um empréstimo da penúltima estrofe do ROMANCE I OU DA REVELAÇÃO DO OURO: "Que a sede de ouro é sem cura,/e, por ela subjugados,/ os homens matam-se e morrem,/ ficam mortos, mas não fartos".

Porém, quero deixar na íntegra o ROMANCE II OU DO OURO INCANSÁVEL:

Mil BATEIAS vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.

De seu calmo esconderijo,
o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho . . .
É tão claro! — e turva tudo:
honra, amor e pensamento.

Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
e acende paixões que alastram
sinistras rivalidades.

Pelos córregos, definham
negros a rodar bateias.
Morre-se de febre e fome
sobre a riqueza da terra:
uns querem metais luzentes,
outros, as redradas pedras.

Ladrões e contrabandistas
estão cercando os caminhos;
cada família disputa
privilégios mais antigos;
os impostos vão crescendo
e as cadeias vão subindo.

Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
— mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.

Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranquilo,
que a noite é um mundo de sustos.

Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro.



As bateias para garimpo

"Por ódio, cobiça, inveja,/ vai sendo o inferno traçado"... "É tão claro! [o ouro] e turva tudo:/ honra, amor e pensamento"... turva os rios, contamina com mercúrio, mata os peixes, adoece os humanos que ali vivem...

Cada vez mais entendo os mendigos, os loucos... é preciso se desligar, se desconectar para não adoecer - contraditório, não é mesmo, pois para a sociedade perfeita, cristã, ilibada, justa, estes são os doentes, junto com o pobres, negros, homossexuais, maconheiros ou qualquer outro grupo minoritário ou excluído por alguma característica, que desonram a ideia unívoca de vida, defendida por quem tem o poder de produção e de manutenção de sua narrativa exclusiva/excludente.

Vou encerrar tentando reproduzir a fala da enfermeira entrevistada ontem na reportagem do Fantástico: "eles irão encontrar um modo de regenerar a terra, com a sabedoria deles, mas primeiro, precisam ter a saúde reestabelecida; eles encontrarão o caminho..." (escrevo de memória, o que ficou em mim, do que ouvi ontem...). Há um poder nessas palavras! Sim, eles encontrarão o caminho da regeneração... a que custo... a que custo...



quarta-feira, janeiro 25, 2023

COMO BICHOS QUANDO SE LEVANTA UMA PEDRA

Na pandemia, especialmente nos primeiros meses, eu li muito. Muito mesmo! Um dos livros que devorei foi o "Livro do Desassossego", de Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. É um livro que me impressionou bastante, para uma pessoa de alma desassossegada que eu estava desde 2017/2018, vivenciar o horror dos primeiros meses da pandemia, pessoas morrendo, sem poderem respirar, por conta de um ser microscópico, um vírus, sem vacina eficaz à época.

Tudo isso, somado e multiplicado a outros fatores externos e internos, que vão se retroalimentando, um interferindo no outro. Presos (que delícia!) dentro de casa - e fomos "privilegiados" por ficar a pandemia numa "mansão", passei a odiar dias ensolarados, céu azul, nuvens brancas... Os dias nublados e chuvosos combinavam e ainda combinam mais com meu interior.

Dedicarei este texto, em efeito retardado, às minhas impressões ou destaques de trechos do referido livro. Conheço pouco, muito pouco de Fernando Pessoa, porém, este pouco que li - não apenas no livro, mas outras informações sobre sua vida, já me impressionam sobremaneira. Com certeza, Fernando Pessoa, foi um sujeito com muitas sobre-excitabilidades (ler Kazimierz Dabrowski ou estudiosos desse psiquiatra polonês). São cinco: sobre-excitabilidade emocional, imaginativa, intelectual, psicomotora e sensorial.

No caso de Pessoa, claro que são apenas especulações minhas, emocional, imaginativa e intelectual, com certeza, mas a sensorial, com base no que li no diário de Bernardo Soares, é muito evidente. O modo como ele nomeia e descreve sensações, o incômodo de quase todas delas, por isso sobre-excitabilidade, over, over, over...

"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir", é um ótimo exemplo e uma construção com a qual me identifico demais. Escrever é isso: diminuir a febre de sentir. Nos idos de 1999 ou antes, escrevi um "poema" - entre aspas mesmos: "Eu, poeta que não sou" e que contém essa ideia de sofrer a vida e a necessidade de escrever sobre ela.

"A poesia me perturba assim:/ Se vejo o pôr-do-sol, primeiro admiro,/ depois ele me persegue até sobre ele poetar./ Se me pego preso à luz da lua, primeiro me deixo levar,/ depois ela não sai de mim até acalmá-la na ponta da caneta."

"Viver é não pensar" (p. 109). "O coração, se pudesse pensar, pararia" (p. 16). "O mundo é de quem não sente" (p. 257). Nesta última frase, o autor prossegue: "A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade". "Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o Céu" (p. 25). "Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos" (p. 101) - coloquei esta última como epígrafe no meu perfil de whatsapp hoje (25/01/2023).

Tentei no final do ano passado, reler o livro e consegui até um tanto, destacando com marca texto algumas dessas passagens... não consegui reler até o final... Ontem decidi buscar uma passagem específica que fiquei devendo numa interação de comentários do Facebook, com uma ex-aluna querida, a Grazi Pestana. Na postagem, um trecho do Carl Sagan e eu comentei que lembrava uma passagem do "Livro do Desassossego" e, acredito que não fiz o retorno a ela, de que encontraria o trecho e a enviaria.

De tudo o que li na primeira vez, o trecho a seguir, especialmente a imagem que Pessoa descreve, passou a habitar minha alma e coração, imbricada com minha descrença do mundo - tão supérfluo!, de deus, céu, inferno, a parafernália cristã toda - e aqui não é um ataque à fé de ninguém, apenas um reflexo natural de quem esteve pouco mais de 20 anos dentro desse grupo religioso.

"[...] gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido" (Bernardo Soares, "Livro do Desassossego", p. 112). É isso! É exatamente isso que somos.


O início desse parágrafo é impressionante: "Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido".

Fernando Pessoa honrou sua palavra, soube existir para além da vida terrena, por meio da "voz escrita" e, neste livro especialmente descreve imagens intelectuais perfeitas.

Conheci um poema nas redes sociais ano passado, de uma poeta mineira. Busquei informações sobre ela, óbvio... vou tentar resgatar aqui, pois neste momento que escrevo, sei o que quero dizer, mas minha memória está prejudicada... Depois de uma pesquisada no Facebook (postagem minha de 05 de abril de 2022), encontrei o poema e a poeta: "Teologia II", de Orides Fontela (1940-1998):


Associei o poema com essa passagem de Bernardo Soares: "Haja ou não deuses, deles somos servos" (p. 30). Por minha vez, também influenciado pela leitura mais recente (início de 2022), dos livros de Yuval Noah Harari: "Sapiens: uma breve história da humanidade" e "Homo deus: uma breve história do amanhã", escrevi "Haja Deus":


Outras passagens que destaquei entre ontem e hoje, nesse retorno ao "Livro do Desassossego": "[...] O mal da vida, a doença de ser consciente com o meu próprio corpo e perturba-me" (p. 95). A altíssima sensibilidade, como se o corpo fosse uma esponja, uma antena, um imã de sensações e ele tentou controlar a avalanche constante das sensações produzidas de seu contato com a existência. Acredito que por essa hipersensibilidade, a febre de Pessoa era constante.

"[...] Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das códeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes" (p. 69). Tive que procurar "códea" no dicionário, e trago para você minha leitora, meu leitor: "a parte exterior do pão, do queijo, das massas endurecidas pelo cozimento".

Vários exemplos de mal-entendidos com a realidade podem ser levantados aqui: desde a ideia da Terra ser o centro do Universo ou do Sistema Solar, até o problema mortal com a ideia de "deus monoteísta" judaico-mulçumano-cristão. Não bastasse as brigas e disputas "internas", como a briga de Esaú e Jacó, anteriormente, tem Isaque e Ismael, ambos filhos de Abraão - o mais velho (Ismael) com Hagar e, Isaque, com a idosa Sara. E a disputa para quem é o filho legítimo, herdeiro do Deus Poderoso, temos o conflito secular e presente/permanente em pleno século XXI, como a Faixa de Gaza.

Sobre o relato bíblico de Hagar, me ocorre um poema chocante, de Adriane Garcia, poeta mineira, que nos oferece outra perspectiva dessa história: a perspectiva da serva, da própria Hagar.

Lembrei de outros versos de Cecília, do poema "Contemplação", que carrega essa ideia de que o que fazemos tem consequências e sequelas, imediatas e seculares: "Tão poucos somos, - e tanto causamos,/ com tão longos ecos!/ Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos". 

O importante aqui é a construção que Pessoa nos presenteia: vivemos baseados em pequenos mal-entendidos e enchemos a boca para dizer "eu sou..., você não é...", sendo que nada, nem ninguém não é, pois tudo é ilusão...

"De repente estou só no mundo. Vejo tudo do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro" (p. 84/85). Que imagem! Telhado espiritual, uau! E faço mil conexões... Albert Camus que escreve: "Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente". Afinal, um Filósofo! Prefere a consciência. Muitas passagens sobre solidão e o sentimento de ser estrangeiro de Cecília Meireles ("Desejo de regresso", logo abaixo). O próprio Camus escreveu "O estrangeiro", que é essa a ideia, estrangeiro de si, do mundo, da vida...

Desejo de regresso

Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.

E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.

Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!

Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira…)

É como me sinto! Estrangeiro! Só no mundo... e, novamente, isso não tem a ver com "nossa, nem sua esposa e filhos te dão sentido de pertencimento?"... Espero que façam uma análise mais profunda do que escrevo, pois é exatamente isso que estou tentando dizer. Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita... Exercício difícil. Se o foi para Pessoa, ele se empenhou tanto, que conseguiu.

Manual Bandeira, no poema "A vida assim nos afeiçoa", na última estrofe, em poucas palavras, ele define a dicotomia de viver (que maravilhoso! que terrível): "A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel" ("Estrela da vida inteira: poesias reunidas", Manual Bandeira, p. 20/21). A vida prende, mesmo que seja um inferno, nos afeiçoamos nas pequenas bolhas de esperanças, que logo estouram... por isso a vida é requintadamente cruel!

Cecília Meireles, na última estrofe de "A flor e o ar" escreve: "Neste destino a que vim,/ tudo é longe, tudo é alheio./ Pulsa o coração no meio/ só para marcar o fim" ("Retrato Natural", Obra Poética, p. 362). Tudo é longe! Tudo é alheio! Hoje eu li, de Cecília também: "Meus olhos andavam mais longe do que nunca,/ voavam, nem fechados nem abertos,/ independentes de mim,/ sem peso algum, na escuridão/ e liam, liam, liam o que jamais esteve escrito/ na rasa solidão do tempo, e sem qualquer esperança,/ - qualquer" (última estrofe do no. "Dois", "Doze noturnos da Holanda", Obra Poética, p. 382).

Hoje pela manhã, levei Benjamin ao HC-UEL para tirar sangue... As veias dele não facilitam o trabalho para a retirada do sangue, ou seja, muitas furadas, sem sucesso e muita dor... e não estou falando só de hoje, que foram duas furadas sem sucesso, sendo a segunda que o fez derramar lágrimas pesadas. E ele não é a criança-comum que berra, esperneia, como num extinto natural de sobrevivência para fugir desse lugar traumático, que causa dor. Como um cordeiro vai para o abatedouro, ele permanece quieto, parado, tenso sim, e quando a dor é terrível, brotam as lágrimas de uma tonelada cada uma, pesadas porém mas silenciosas.

Como disse para a jovem enfermeira (no jaleco estava escrito biomédica) que furou as duas primeiras vezes: desde o primeiro dia de vida, 14/06/2014, ele é furado. Passou pela tentativa de extração do liquor da medula óssea. Eu estava lá e ouvi os berros daquele pequeno bebê que acabara de sair do ventre materno - por conta da toxoplasmose congênita, e até a alta com 2 anos e meio, muitas furadas. A enfermeira Vera resolveu a questão hoje. Apalpou, procurou, sentiu a veia e terceiro furo foi certeiro. Levantei as mãos aos céus: Viva a Vera! Benjamin voltou mais silencioso no trajeto de Uber...

Amo meus filhos e por amá-los tanto, me arrependo de tê-los tirados seja lá onde estavam para virem sofrer nesse inferno que chamamos Terra. Anseio para que ganhem ferramentas emocionais, intelectuais, espirituais - e nunca religiosas, para saberem minimizar as sequelas dos sofrimentos terrenos...

Bem, por enquanto é isso. Felicidade e ser consciente são incompatíveis mesmo, Camus. E para terminar com mais uma ideia de Bernardo Soares, afinal, quem me trouxe para esse texto, na tentativa de diminuir a febre de sentir: "Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez" (p. 154).