O privilégio de ler um autor contemporâneo que escreve sobre memórias da sua infância, sobre familiares, sua relação com a palavra, a ligação com o objeto livro. Autor brasileiro, nascido na década de 1980, altamente sensível. Todas estas características me levaram a uma identificação com a persona apresentada pelo escritor/leitor Paulo Roberto Farias.
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| Capa do livro |
No seu terceiro livro "Um rio corre dentro do meu sonho" (2024), pela Editora Caos & Letras, com crônicas sem títulos - o que lembra um diário, ainda que não tenha datas, as crônicas versam sobre o fascínio do autor pela Palavra e suas infinitas possibilidades de expressão, seja pela leitura, pela escritura, pela atuação como ator de teatro. Lembranças da infância/adolescência de um menino com medo do mundo, a timidez, enfrentando os obstáculos para tornar-se quem desejava/deseja ser.
O "rio" do título é uma mescla de vários rios da hidrografia da região que os familiares do Paulo viveram, onde ele nasceu, onde passou a infância. Rios que correm, transportam vida, mas também destruição. Em várias passagens, o autor comenta sobre enchentes históricas e a mais recente de 2024, que devastou aquela região do Rio Grande do Sul.
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| Rio Taquari-RS |
Minha identificação com as crônicas do Paulo passa pela relação com a Palavra, com o objeto livro, com o interesse pela história dos seus ascendentes - de onde vieram, como foram suas vidas naqueles tempos, tudo o que tiveram que passar para chegar até o pai e a mãe, com a união de seus materiais biológicos, nos formaram.
Fiquei encantado com a biblioteca do velho alemão; idoso que os tios cuidavam e, portanto, moravam na casa deste homem. Biblioteca que o menino Paulo era fascinado e a descrição que faz dela e dos livros muito antigos trazidos do velho continente, em língua estrangeira criaram o desejo de conhecê-la. Cheguei a pensar: poderia ter exemplares raros, mas se perderam, pois são raras as pessoas que se interessam pela história da escrita, do livro, dos percalços e percursos que a humanidade enfrentou e traços para chegar até nós, a herança da palavra escrita e registrada, atravessando todo tipo de intempéries.
O que pode uma alma sedenta por palavras, por histórias, contra um mundo que passa e segue como um trator? Com toda a transformação da Natureza e de como tudo o que os homens constroem ficam à mercê dessas transformações: construções de cidades, barragens, plantações, desmatamentos, assoreamentos, toda a mudança climática que vemos diante de nossos olhos e nos atravessam material e imaterialmente.
Amei cada página lida, pois, além do poder da literatura e da leitura já conhecidos, há o privilégio de ler literatura feita de histórias e sonhos e desejos de alguém que vive e respira o mesmo tempo cronológico que eu. Cito especialmente a crônica da página 85 que começa assim: "Eu sou dois. Desde pequeno. Um é medroso, o outro é exibido". Interessante! Interessantíssimo!
Eu fui só o medroso. Uma criança extremamente tímida, timidez mórbida que me acompanhou até meus 19 anos de idade. De lá para cá, venho num movimento de transformação. Passei pela fase de enfrentar o público, mesmo com medo. Na graduação com os diversos seminários, na pós-graduação, como professor. E vamos pegando o jeito, a ponto de entrar numa nova sala de aula com 20 e 30 jovens e não ter mais medo, apenas aquela expectativa gostosa "com que diversidade serei presenteado agora?". O mesmo para várias palestras e formações de professores que ministrei...
Depois da pandemia e agora na minha fase mais pessimista, uma pessoa que não acredita em quase nada, tenho preferido o silêncio, a reclusão, quase um retorno ao menino do quarto que fui, porém, naquela época, eu não tinha escolha, ou não tinha recursos e vivências para ser diferente. Hoje, eu prefiro ser o "menino do quarto".
Eu quero uma casa no campo, como a da canção! "[...] eu quero o silêncio das línguas cansadas", "uma casa do tamanho ideal, pau a pique e sapê, onde possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais".
É provável que um rio corra perto desta casinha e eu ouça suas águas passando, enquanto eu esteja no deleite com um livro...








