Terminei de ler hoje (18/09/2023), o "Cândido ou o Otimismo", de Voltaire, depois de descobrir que eu tinha uma linda edição de 1983, com tradução de ninguém mais, ninguém menos de Mário Quintana, em minha estante pessoal (Voltaire - Contos, foto abaixo). Foi a amiga - hermana - Sílvia Brandão que me falou sobre este texto quando ambos habitávamos o "mundo invertido" em que fomos parar em maio de 2022.
É provável que nossa conversa versava sobre a positividade tóxica que permeia muitos dos nossos ambientes, seja por meio dos coaches ou de líderes "espirituais". Lembro-me de ficar com o nome de "Pangloss" gravado na memória dessa conversa e, é, segundo o texto altamente irônico e "improvável" de Voltaire, o filósofo com o qual Cândido confia seu modo de existir no mundo e enfrentar as tremendas dificuldades pelas quais passa até finalmente resolver seu maior dilema, com sua amada Cunegundes.
Entre tantos fatos e acontecimentos de lá para cá - da indicação da hermana Sílvia para eu encerrar a leitura, as muitas conexões cerebrais, na mudança de casa para o apartamento, veio um clique: tenho um livro de Voltaire na minha estante... quem sabe, por um lance de sorte, não esteja neste livro o "Cândido". Bingo!
É estranha a sensação de ler um texto escrito no século XVIII e, nesta edição que tenho, traz um texto introdutório com informações sobre o contexto em que foi escrito, o que favorece uma leitura mais significativa ou com detalhes que fazem a diferença no entendimento geral da obra.
Eu teria mil considerações sobre a experiência de leitura e seu conteúdo especialmente neste meu tempo de descrença em deus cristão ou qualquer outra divindade. Escrevo este texto um dia após receber a triste notícia do falecimento do meu tio e padrinho, Élio, irmão de meu pai. Mais chocante foi saber as circunstâncias em que foi encontrado. Escreverei outro texto sobre meu padrinho, em momento oportuno, um modo de tentar elaborar o luto.
Neste texto, o intuito é mostrar um único trecho do livro e a relação que fiz com um poema de Manuel Bandeira, que já postei duas ou três vezes nas minhas redes sociais, desde que o conheci. O trecho do livro é o que segue:
XII
Continuação das desgraças da velha
[...] Envelheci na miséria e no opróbrio, não tendo mais que a metade do traseiro, e sempre a lembrar-me de que era filha de um papa; cem vezes quis matar-me, mas ainda amava a vida. Essa ridícula fraqueza é talvez um dos nossos pendores mais funestos: pois haverá coisa mais tola do que carregar continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra? Ter horror à própria existência e apegar-se a ela? Acariciar, enfim, a serpente que nos devora, até que nos haja engolido o coração?" (p. 178).
É extremamente forte essa "imagem" sobre existir, especialmente, a existência de pessoas que padecem, sofrem, do início ao fim da vida neste plano (crueldade maior se existir outros planos!). Destaco o verbo "apegar-se" que se conecta direta e certeiramente com o poema "A vida assim nos afeiçoa" (Manuel Bandeira). Apegar-se à existência! Afeiçoar-se à vida! Destaco a primeira e última estrofe do referido poema:
Se fosse dor tudo na vida,/ Seria a morte o grande bem./ Libertadora apetecida,/ A alma dir-lhe-ia, ansiosa: 'Vem!
[...]
A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel...
Como escrevi acima, teria mil considerações sobre o texto de 1758/1759, repleto de reviravoltas - plot twist, diriam os mais novos, como aprendi, com os meus alunos universitários de outrora e acontecimentos mirabolantes. O final inesperado - pois em meu interior já tinha criado mil e uma finalizações drásticas, levando em consideração todo o enredo. Entretanto, o final ainda que inesperado, foi adequado, talvez.
Disse que citaria apenas um trecho - pois somos TODOS, SEM EXCEÇÃO, seres contraditórios - mas não quero finalizar o meu texto sem falar sobre o final de Cândido e à "conclusão" que seus companheiros e empregados chegam, inclusive Pangloss:
" - Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim.
- Tens razão - disse Pangloss -, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum*, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.
- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho; - é a única maneira de tornar a vida suportável." (p. 235/236).
E cá estou eu, fazendo o quê? Praticando filosofia barata...
P.s: em tempo: Pangloss vai tomar no c*
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* Latim ut operaretur eum: para servir
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