Paula e eu terminamos de assistir aos 40 episódios, distribuídos em quatro temporadas, a série da Netflix, The Crown (A Coroa), com enfoque na vida da Rainha Elizabeth II, monarca do Reino Unido.
Tudo é muito primoroso, em termos de produção televisiva, sendo inclusive a mais cara já produzida até então. A abertura é de uma imponência, uma experiência áudio-visual arrebatadora, a construção gradual da coroa, junto com a música instrumental, que vai num crescente e, dependendo do volume da TV, fica ensurdecedor nos últimos segundos!
Sim, a família real britânica parece exercer um fascínio geral; mesmo não querendo, estamos ali, na TV, na internet acompanhando as intempéries dos membros da família real. Alguém resistiu e não assistiu ao casamento do príncipe William com Kate na TV aberta (29 de abril de 2011), ainda que pequenos trechos ou leu algo a respeito?
Para nós que vivemos em um país de regime presidencialista, que temos uma jovem e frágil democracia, parece mais distante e surreal que um país, em pleno século XXI, ainda seja uma monarquia constitucionalista, como é a Inglaterra. Na verdade são 43 países que ainda possuem algum tipo de monarquia – onde o monarca pode ter mais ou menos influência nas questões de decisões do país.
Ainda que eu não seja especialista em nenhum dos temas que toco nessa pequena reflexão, quero/preciso registrar um ponto principal que a série suscitou em mim:
- A necessidade que o ser humano tem em se agarrar a um mito:
No episódio 4 da primeira temporada (Ato Divino), Elizabeth visita a avó Mary, que havia enviado uma carta na ocasião em que o rei havia morrido (pai de Elizabeth, filho de Mary), portanto, Elizabeth seria coroada a nova rainha. Elizabeth lê um trecho da carta:
“Lealdade ao que você herdou é seu dever acima de tudo, porque o chamado vem de uma origem mais alta. Do próprio Deus”. A rainha pergunta se a avó acredita realmente nessa afirmação e avó responde:
“A monarquia é a sagrada missão de Deus para abençoar e dignificar a Terra. Para dar as pessoas comuns um ideal pelo qual viver, um exemplo de nobreza e responsabilidade para elevá-las de suas vidas miseráveis. A monarquia é um chamado de Deus. Por isso a coroação é numa abadia e não num prédio governamental. Somos ungidos, não indicados. É um arcebispo que põe a coroa em sua cabeça, não um ministro ou funcionário público. E, por isso, você responde a Deus em seu cargo, não ao público”.
A rainha Elizabeth traz argumentos do marido, o príncipe Philip, que não concordaria com essa definição de monarquia, que deveria ser mais atual. Igreja e Estado serem separados. A avó contra argumenta desqualificando a ascendência real do príncipe que não é tão antiga e cheia de qualificadores como os antigos monarcas britânicos.
A questão é: fiquei chocado com essa afirmação da rainha Mary. Se a fez realmente ou não, está claro que é assim que pensa e age a monarquia, especialmente a britânica.
Por isso tantos protocolos. Por isso tantos impedimentos de uma vida próxima ao comum (das vidas miseráveis!). E este é exatamente o ponto: os membros da família real são humanos, mas se recusam a ser somente humanos. Ou os protocolos e os conservadores não deixam que qualquer membro da família real deixe a personalidade ou individualidade se sobressair. O que causou e causa tanto sofrimento neles.
O próprio Rei Eduardo VIII que abdicou do trono por conta do amor a uma americana divorciada, ao que pese outras tantas questões polêmicas sobre esse casal (a aproximação com o nazismo, etc). Ambos e especialmente o ex-rei, na série, são retratados como verdadeiros inimigos da Coroa, por não ele não ter sido fiel ao chamado da Coroa e ela, o motivo de ter desviado o rei desse chamado.
O contraditório é que, as pessoas comuns ainda acreditam que seria um verdadeiro conto de fadas terem uma vida na família real. E, ouso dizer que o fascínio do público pela realeza é esse: acompanhar esse reality show, esperar uma traição, um deslize, um ato próximo do comum, para o “bem” ou para o “mal”.
A impossibilidade de se casar com que se ama. A impossibilidade de se divorciar e etc, sabemos mais ou menos o sofrimento da princesa Diana, entretanto, a irmã da rainha Elizabeth, a princesa Margaret sofreu de modo muito próximo à tortura moral e psicológica. É sofrível acompanhar a vida triste e frustrante dessa mulher.
Igualmente é sofrível e frustrante acompanhar a vida de qualquer um deles. Vibramos com qualquer atitude mais humana que venham ter, como um abraço ou expressão de seus reais sentimentos e desejos.
No livro “Amor, poesia e sabedoria”, do filósofo francês Edgar Morin, sobre o amor, o autor localiza o amor em dois extremos: o físico e o mitológico, sendo que o primeiro está relacionado ao “engajamento do corpo” (e não somente a questão biológica do sexo), beijo, olho no olho, declarações amorosas, etc... o aspecto mitológico do amor está relacionado a tudo que se idealiza sobre a questão, o aspecto sagrado (religioso ou não). Em ambos os aspectos, Morin deixa claro que são influenciados por questões culturais: como expressar o amor, como “executar” o ato de amar.
Trago a discussão do amor, com base no texto de Morin, somente para incluir a questão do mito, que a meu ver, absorve todos os aspectos da nossa vida, não somente no amor. O mito que explica a criação do mundo (não somente judaico-cristã), o mito que rege nosso comportamento, o mito do desejo de ter poder e dominar. Mitos! E, deixo claro que os mitos não são ruins, desde que não sejam eles fonte de destruição da nossa humanidade ou que sejam usados para impor padrões e, portanto, causar dor e sofrimentos naqueles que estão “fora dos padrões”.
Como é triste a vida humana quando é afastada da sua humanidade. Tristeza que pode levar a tragédias individuais (que nunca são individuais, pois afetam outros ao redor) e podem ser tragédias de um povo, de uma nação (como dos nove anos adicionais para o fim do Apartheid na África do Sul, como veremos abaixo).
Poderia citar tantos outros fatos e episódios da série, como aquele em que um “miserável” britânico invade o castelo de Windsor e vai até o quarto da rainha. Como algumas questões históricas – Guerra de Suez, Guerra das Malvinas, Guerra Fria, estão associadas aos egos de políticos e monarcas.
Foi tocante o episódio em que o príncipe Philip fica obcecado com a viagem da Apollo 11 até a lua. O roteiro vincula sua frustração enquanto homem que quer desbravar o mundo e seus próprios limites, entretanto, deve ocupar-se em ser um enfeite, um bibelô – assim como são todos, começando pela rainha, que na série e na vida, demonstra ter incorporado bem essa figura de ser um enfeite!
Quando o príncipe se encontra com os três astronautas – privilégio por ser príncipe, ele fica frustrado em constatar a humanidade dos garotos. São homens comuns que realizaram um feito extraordinário, mas são humanos: ficam doentes, possuem seus próprios ídolos, sonhos e desejos. São sábios e falhos!
Peguei uma raiva de quase todos os personagens, especialmente, dos conservadores. Uma imensa tristeza e empatia pelos que sofreram (Margaret e Diana). Príncipe Charles é uma vítima – da Coroa, do pai, da mãe, e ele próprio não teve coragem de brigar e assumir o amor por Camilla (sua atual esposa), sem antes tornar-se também co-autor (senão o principal) algoz de Diana.
Uma raiva em particular da primeira-ministra Margaret Tatcher, que pode ser uma figura histórica tida como brilhante, magistral, porém (e exatamente por sermos seremos complexos e contraditórios), a série deixou claro que a recusa dela, enquanto primeira-ministra em assinar o documento de sanções comerciais e econômicas contra o governo da África do Sul, juntamente com os outros países que faziam parte da Comunidade Britânica, para que acabassem com o “Apartheid”, foi para defender interesses do próprio filho, tido como o favorito dela, pois ele mantinha negócios com a África do Sul.
No final desse episódio, a série informou que em 1994 o Apartheid caiu e Nelson Mandela foi eleito o primeiro presidente negro do país. Perguntado se as sanções ajudaram a derrubar o Apartheid, ele respondeu: “Sem dúvida nenhuma”. A primeira-ministra poderia ter feito isso em 1985. Bruxa! Demônia! São os qualificadores que posso publicar aqui de como xinguei aquela mulher.
Faço referência novamente ao texto de Morin, quando ele questiona o “título” dado à espécie humana atual: “homo sapiens”, ou seja, o homem racional e sábio.
“Ser
Homo implica ser igualmente demens: em manifestar uma afetividade
extrema, compulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor;
em carregar consigo uma fonte permanente de delírio; em crer na virtude de
sacrifícios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder a mitos e deuses de
sua imaginação” (p. 07).
O autor segue dissertando sobre a importância da loucura para nossa espécie: “[...] é fonte de ódio, crueldade, barbárie, cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e as irrupções do imaginário, e sem a loucura do impossível, não haveria élan, criação, invenção, amor, poesia” (p. 07).
A vida é, afinal, uma busca incessante por um equilíbrio entre racionalidade e loucura. Morin pergunta: “Prudência, sim, mas isso não significa esterilizar nossas vidas, evitar iscos a qualquer custo? Temperança, sim, mas será mesmo necessário evitar a experiência da ‘consumação’ e do êxtase? Desprendimento, sim, mas será mesmo necessário renunciar aos laços de amizade e amor?” (p. 08).
A Coroa é uma “sagrada missão de Deus” que a família real britânica está disposta a levar adiante, a qualquer custo, evitando toda experiência de consumação e êxtase, renunciando laços de amizade e amor, mesmo que seja apenas para manter as aparências e com brutal esmagamento da mulher (os homens podem ter suas amantes, as mulheres não, ou são mais crucificadas por terem amantes), mas se mantem o sacramento do casamento intacto.
Com tudo isso não estou dizendo que sou anti-monarquista, abaixo a coroa, que acabe de uma vez... Talvez, é só um desejo de uma realeza mais próxima da realidade humana (sapiens/demens), sem construir aparências e exigir o cumprimento de regras sem levar em consideração o humano. O que pode ser contraditório, pois quebraria o "encanto" e o mito se desfaria...
“Finalmente creio que as grandes linhas da sabedoria se encontram na vontade de assumir as dialógicas humanas, que podem ser resumidas na dialógica sapiens-demens e na dialógica prosa-poesia”, escreve Morin nas últimas páginas.
Todos nós elegemos, consciente ou inconscientemente, nossos mitos e deuses, não somente no aspecto transcendental, mas em nosso dia a dia, nas questões políticas, econômicas, sociais, educacionais, de lazer... Para a maioria dos britânicos a monarquia é um desses tantos mitos idealizados. Para nós, cidadãos de um país com imenso potencial, porém, dominado por uma cultura colonialista, regidos pelo padrão do homem branco europeu ou do “sonho” norte-americano, quantos mitos nos regem?
Com esta pequena reflexão, não estou atacando a coroa ou qualquer outro sistema. Estou tentando exercitar o que Edgar Morin escreveu abaixo: um auto-exame, autocrítica. Pensar sobre tudo isso que chamamos de mundo e de vida!
“Se o mal que sofremos e fazemos sofrer reside na incompreensão do outro, na autojustificação, na mentira a si próprio (self decepction), então o caminho da ética – e é aí que introduzirei a sabedoria – reside no esforço da compreensão e não na condenação, no auto-exame, que comporta a autocrítica e que se esforça em reconhecer a mentira para si próprio” (p. 67).
E você? Assistiu à série "The Crown"? Ainda que não assistiu, tem algo a dizer sobre as questões citadas nesse texto? Ficarei imensamente feliz se quiser e puder compartilhar comigo.
p.s.: a concretização do mito na figura da princesa Diana, que morreu tragicamente, tornando-a "um mártir" pelos feitos em vida, eternamente jovem em nosso imaginário. Igualmente, com a Rainha Elizabeth, indo para o lado cômico com sua firmeza e longevidade, haja vista tantos memes produzidos brincando com sua idade e por ter participado de tantos eventos mundiais, conhecido tantos líderes mundiais importantes, que já morreram e ela segue firme. Enfim, há tantos elementos para serem analisados e discutidos.
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