Não sabiam falar com a voz, afinal não precisavam dela; entendiam-se perfeitamente bem com as mãos. Claro que tinham pregas vocais e os moradores da Surdolândia contavam e recontavam “lendas” para as gerações mais novas, de épocas em que seus ancestrais eram forçados a vibrar “um músculo bem aqui, oh!” – e apontavam para o pescoço.
As crianças ficavam admiradas e espantadas. Secretamente, longe dos adultos, forçavam a garganta para saber se acontecia algo. Em vão! Riam das “caras&bocas” provocadas por tanto esforço. O esforço era em vão, não porque não saia som... Afinal, estavam na Surdolândia!
Essas e outras histórias antigas, como, por exemplo: a de aparelhos estranhos pendurados nos ouvidos; aliás, os ouvidos, na Surdolândia, são chamados de sustentadores (substantivo perfeito para a função que desempenhavam para aquele povo: sustentavam óculos, brincos e outros acessórios estéticos), não aparelhos esdrúxulos como descreviam os mais velhos.
“Diziam que ajudavam na hora de mexer a garganta”! – as crianças ficavam mais espantadas e intrigadas, imaginando que relação haveria entre os sustentadores e a garganta.
As mãos eram muito preciosas na Surdolândia; estavam estampadas até na bandeira nacional, lindas e maravilhosas mãos, orgulho para os cidadãos de Surdolândia. Algumas estrofes do Hino Nacional, “entoado” com as mãos, também exaltavam a destra e a canhota, este par habilidoso. Por falar em lateralidade, quase 90% da população era composta de canhotos. Na língua de sinais, há a predominância de uma das mãos, mas para os próprios sinalizadores ser destro ou canhoto era um simples detalhe, quase imperceptível.
Existia TV na Surdolândia, toda programação era em língua de sinais. Programas sobre cuidados com as mãos era uma constante. Havia um rádio. No museu. Mais uma peça intrigante do passado para as novas gerações de surdos. Por ser um objeto raro, este único rádio era avaliado em torno de 100.000 LIBRAS[1]. Os jornais, livros e demais registros impressos eram em “sinal-escrito”, muito parecido com ideogramas. As crianças, em fase inicial de escolarização, logo aprendiam o “sinal-escrito”, não porque era uma transposição direta da língua de sinais, mas porque seus professores exploravam precocemente a função social da leitura e da escrita.
Surdolândia estava prestes a descobrir algo surpreendente. Era cada vez mais comum, pais relatarem que seus filhos assustavam quando algo caía próximo a eles. Esta reação era raríssima em Surdolândia, por tanto, os pais que a percebiam, não davam atenção. Porém, o fenômeno do susto com objetos ou outros eventos não sabidos ainda, tornaram-se recorrentes.
O caso mais espantoso foi dos gêmeos. Os pais descobriram a anomalia quando uma panela caiu e os dois começaram a chorar. Pior, ao ver panelas, começam a piscar e retrair os ombros como esperando novamente o susto. Decorrido alguns meses, os pais dos gêmeos passaram a perceber uma forma de interação entre as crianças que não utilizava as mãos. Estavam apavorados!
Foi então que um estrangeiro vindo de terras bem distantes, o qual não se comunicava com as mãos, desestabilizou a paz em Surdolândia... Anos depois à sua chegada, o pequeno país passou a ter jovens e crianças que se comunicavam sem as mãos, influenciados pelo forasteiro.
As autoridades não sabiam que atitude tomar. Não viam benefício e sentido naquela forma de comunicação, mas cientistas já apontavam a possibilidade de alguma anomalia bio-fisiológica de alguns jovens e crianças, pois não eram todos que conseguiam êxito. Levantavam hipóteses sobre a ligação entre os sustentadores e a garganta ser real, embora, não entendiam como os sustentadores funcionavam sem os lendários e esdrúxulos aparelhos! Alguns médicos já tinham a convicção que as crianças que levavam sustos com objetos que caíam, em 99% passaram a se comunicar como o forasteiro. Ainda que não deixassem de usar a língua de sinais.
“Pais, mestres e digníssimos cidadãos surdolenses. Cuidemos de nossas crianças para que nunca deixem de sinalizar. Não sabemos os malefícios dessa comunicação “quieta”, “estática”, sem vida, que não usam os preciosos e ricos movimentos das mãos. Não podemos permitir que o símbolo de nossa nação – as mãos e o poder que possuem de significar o mundo, seja prejudicado por influências estrangeiras.” – pronunciou em rede nacional, o presidente da Surdolândia, o qual foi ovacionado por milhares e milhares de palmas, braços levantados ao céu, mãos e dedos movimentados pra lá e pra cá, numa “dança” sincronizada.
Fim
André Coneglian
dezembro de 2006.
[1] Não resisti ao trocadilho, ou melhor, à semelhança entre a sigla da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a moeda inglesa, Libras Esterlinas, comumente confundia aqui no Brasil.
Um comentário:
Ótima história! Retrata bem o preconceito existente entre ouvintes e não ouvintes, e a importância de haver interação entre esses dois grupos, assim como ha a interação entre pessoas de países diferentes.Assim como o André têm buscado trocar informações com a amiga Boliviana e têm procurado aprender a forma de linguagem dela, creio que é importante que os ouvintes busquem aprender a linguagem dos não ouvintes (LIBRAS), pois eles também possuem muitos conehcimentos que poderiam nos passar.
Meire Drago Lopes
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