Preciso pontuar aqui no início que não sou crítico literário - e não o gostaria de ser. Eu escrevi isso ao Paulo Roberto Farias, ao finalizar a leitura que fiz do primeiro livro dele "As tessituras da noite" (Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013). Ontem - 09 de julho, iniciei a leitura do segundo livro do Paulo, "Deixa eu te falar da noite" (Caos & Letras, 2021) e hoje finalizei a saga de Marla, personagem-narradora. Assim, o que escrevo, é antes de tudo como registro de leitor, para um futuro reler este texto e me lembrar do livro, da história e das sensações causadas pela leitura.
Tinha separado um livro que está há um tempo na minha estante: "Arquipélago Gulag", de Alexandre Soljenítsin, para iniciar neste recesso de trabalho de poucos dias. Então brinquei com Paulo, quando o livro chegou: "Eu ia começar a ler um russo, mas vou ficar com o gaúcho!".
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Capa do Livro "Deixa eu te falar da noite" |
Marla, personagem fictícia que Paulo tão bem criou, por meio do seu fluxo de pensamento, apresenta-nos sua rotina de funcionária numa lavanderia em Porto Alegre. O desejo de passar no vestibular para o curso de Letras em universidade pública, suas pouquíssimas amizades, seu estilo de vida simples e personalidade, lembrou-me, de algum modo, a personagem principal de "A hora da estrela", de Clarice Lispector, a Macabéa. Ainda, fiz algumas associações com Amélie Poulain, sempre tão preocupada com as demandas alheias e nunca com suas próprias.
E, infelizmente, reconheço esta inocência e credulidade no André do passado, criança, jovem, mesmo adulto, acreditando no melhor das pessoas, acreditando na evolução da humanidade. Por várias circunstâncias, externas e internas, fui parar na escuridão do título, que é uma das frases que Marla sonha e tem necessidade de anotar, mas essa frase especificamente ela diz não anotar, mas não entende seu significado. Muita luz cega! E vêm a minha mente agora, uma citação que Camus faz de um de seus autores favoritos:
"[...] não te deixes filiar. Tatear sozinho no escuro não é fácil. Mas é um mal menor. [...] avançar sempre, no meio de todos, no mesmo caminho pelo qual, na noite da espécie, multidões de homens, há séculos, caminham hesitantes em direção a um futuro inconcebível". ("A inteligência e o cadafalso", Albert Camus, Record, 4. ed., 2018, p. 103).
No recorte de tempo-espaço narrado na história, Marla tem apenas 26 aninhos e, como todo ser humano como ela, que pensa demais "o que os outros irão pensar de mim?", de um modo ou de outro, se aprende que não importa o que os outros pensam a seu respeito, desde que aja com verdade para si, sem ferir propositalmente os demais.
Meu primeiro emprego foi aos 16 anos - e meio, como office-boy, num escritório de cobranças, no centro da minha cidade natal - Marília-SP. Estranho! Escrever office-boy e pensar que não existe mais essa profissão. Bem, afinal sou do século passado. Tinha duas horas de almoço e levava marmita. Comia rápido para poder ir à biblioteca municipal, três, quatro quadras distante do escritório e lá passava o restante do meu horário de almoço. Li muitos livros lá mesmo, sem nunca fazer cadastro da biblioteca, li vários livros de Agatha Christie.
Nessa época eu fazia um cursinho de Inglês e Espanhol, lembro de ter encontrado um livro em Espanhol e tentei a leitura "La cueva de ladrones" - faço uma procura agora no Google, mas não encontro o autor... e Marla tem sua rotina literária, toda terça-feira ir à biblioteca pública emprestar os livros e ter companhia durante a semana e aprender com as histórias. Eu gostaria que Paulo, o autor, pudesse ter nomeado alguns desses empréstimos de Marla.
Fiquei satisfeito com o final da história, apesar de ter imaginado mil outros desfechos! O que me impressionou muito, quase perto do final, foi a reflexão de Marla sobre a morte de uma das seis samambaias que tinha em sua varanda da quitinete da avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, aquelas com grandes coqueiros (eu nunca estive em Porto Alegre, aliás, o mais longe que fui ao Sul do Brasil foi Florianópolis-SC).
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Avenida Osvaldo Aranha Bom Fim, em Porto Alegre-RS |
Marla compra uma nova samambaia e a coloca na varanda. Basicamente, a filosofia de vida de uma samambaia que é a nossa vida humana, os jovenzinhos ("assim novinha e toda bem verde"), cheios de gás e ideologias pelas quais lutar e seguir:
"É tão bonita uma samambaia assim novinha e toda bem verde que as outras parece que ficam até mais apagadinhas perto dela. Só que eu não me engano e por isso não coloquei ela num lugar de destaque só porque é mais bonita que as outras. Coloquei ela bem misturada junto com as outras pra ela ir logo aprendendo que a vida não é sempre assim toda verde e bonita, e que ela só vai sobreviver aqui junto com as outras quando perder um pouco desse brilho de plástico que ela tem. Aqui na varanda não vai ser como lá na floricultura que tinha ambiente climatizado, aqui ela vai ter que passar o dia inteiro junto com as outras, e aprender que não é melhor que elas só por ser mais bonita, e às vezes vai pegar sol nela, e um dia eu posso até me esquecer de molhar ela. E se ela quiser mesmo continuar vivendo vai ter que aprender tudo isso logo, no meio das outras samambaias da minha varanda. Claro que eu não vou me esquecer de molhar ela todos os dias, nem de tirar ela da varanda se estiver pegando sol, e até vou colocar adubo se ela estiver mais fraquinha, mas ela não precisa saber de nada disso. Ela tem que aprender a viver como se eu não estivesse sempre aqui pra cuidar dela." (FARIAS, 2021, p. 173).
A questão é que, como seres humanos, temos que aprender logo e bem aprendido, que não temos ninguém para cuidar da gente. Somos samambaias solitárias e, para finalizar, lembro de um aforisma famoso de Clarice Lispector sobre dar amor e receber amor:
"Ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca".
Fico feliz que Marla soube dar amor e encontrou alguém que faz as pernas dela tremerem.