"Não há nada mais triste no mundo que o vôo do espírito detido pelo peso das necessidades. As obrigações que o homem criou para si mesmo, no sistema de vida que os séculos superpuseram à vida espontânea, começaram por ser uma disciplina de relações mútuas, mas acabaram por uma tortura de prisões múltiplas, diferentes umas das outras para tornarem ainda maior o sofrimento.
O homem tendo que atender a tantas coisas que inventou, secretamente pergunta a si mesmo se valeria a pena tê-las inventado, para assim limitar sua liberdade, para assim ter de ficar como um operário vigilante junto a engrenagens que, ao menor descuido, o sacrificarão – sentindo, no entanto, que a vida verdadeira não é aquela posição atenta do dever, exaustivo, monótono, mesquinho, mas uma participação nesse sentimento total do universo, nessa gravitação geral em que os acontecimento libertam seus ritmos na plenitude de seu poder de realização.
Talvez não seja difícil encontrar-se justamente nos que mais apelam para uma civilização feita conjuntamente, e igualmente distribuída pelos homens todos, esse processo contra o desvirtuamento da capacidade de cada um; contra a limitação de seu destino, por fatalidades detestáveis: contra a incompletação de desenvolvimento, que obrigou, criaturas normais como muitas outras, a precipitarem numa formação medíocre, dando-lhes para sempre esse gosto inexato, e essa aparência castigada dos frutos amadurecidos à força.
Continuam, pois, os ideais individualistas governando a ação mais avançada dos homens. O que se pode dizer é que esse individualismo perdeu a estreiteza com que antes o consagravam: não é mais uma forma luxuosa de viver, para uso apenas de alguns, confinados num mundo pretensioso, inútil e falso. Esse tipo de individualismo estéril não foi, afinal, o dos grandes individualistas de todos os tempos que, seguindo aquela marcha de enriquecimento próprio a que acima nos referimos, foram sempre os mais humanos dos homens, sendo, por isso mesmo, os que, no quadro medíocre da vida, poderiam parecer mais sobre-humanos.
Infelizmente, as palavras têm o amargo destino de, às vezes, comprometerem os pensamentos. Pelo ódio a palavras desfiguradas ou mal compreendidas, tem-se visto perseguirem-se as aspirações que elas definiam tanto quanto os homens que as pronunciavam. Há uma injustiça largamente esparsa pela terra, uma obstinada incompreensão que bem poderia ser responsabilizada por estas demoras de evolução, - se acaso - e sem menor fatalismo – não vai nisto tudo um ritmo necessário, média das possibilidades humanas vencendo os tempos.
Uma coisa, porém, isenta de todas as dúvidas é o sonho de acelerar o progresso humano. Sonho vago, enquanto não se determina – e quando poderá isso ser feito? e por quem? – o que ao certo caracteriza definitivamente esse progresso.
De qualquer modo, parece que não se trata de obra a encaminhar por uma só direção e num único sentido. Será para abranger o mundo, mas para não perder de vista o homem, que o constitui. Para se divulgar largamente, mas sem se dissolver nessa grande divulgação, conservando sempre vivos os núcleos em que se elabora, por uma força espontânea e decisiva, a plenitude ardente que é, afinal, a garantia de uma constante irradiação.
O mundo é complicado e os homens se desentendem tão facilmente quanto seriam capazes de se entender. Mas o que importa é que se faça uma libertação destas necessidades obrigatórias em que a existência se mecaniza, esquecendo-se de que é vida, ou lembrando-se disso com angústia.
A educação pretende hoje realizar esse equilíbrio. Todas as criaturas deviam empenhar-se em ajudá-la, sabendo que trabalham no seu próprio interesse, ao mesmo tempo, no interesse humano, em geral."
Cecília Meireles
[Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 30 de outubro de 1932]
In.: Crônicas de Educação, 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Biblioteca Nacional, 2001. p. 55-57.
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