O Quarto do Menino

"No meu quarto que eu lia, escrevia, desenhava, pintava, imaginava mil projetos, criava outros mil objetos... Por isso, recebi o apelido de 'Menino do Quarto', título que adotei como pseudônimo e hoje, compartilho neste 'Quarto Virtual do Menino', o que normalmente ainda é gerado em meu próprio quarto". Bem, esse início já é passado; o 'menino' se casou (set/2008); há agora dois quartos, o do casal e o da bagunça... Assim, diretamente do quarto da bagunça, entrem e fiquem a vontade! Sobre a imagem de fundo: A primeira é uma reprodução do quadro "O Quarto" de Vicent Van Gogh; a segunda, é uma releitura que encontrei no site http://www.computerarts.com.br/index.php?cat_id=369. Esta longe de ser o MEU quarto da bagunça, mas em 2007, há um post em que cito o quadro de Van Gogh. Como disse, nada mais propício!!!... Passaram-se mais alguns anos, e o quarto da bagunça, já não é mais da bagunça... é o Quarto do Lorenzo, nosso primogênito, que nasceu em dezembro de 2010!

sábado, dezembro 23, 2023

MEU AMIGO ALÊ

 "Vocês me dão licença, vou me recolher..."

Estas foram as últimas palavras que ouvimos do amigo Alessandro.

Dia 22/11 [2023] recebemos a notícia de que ele estava com "câncer terminal".

Dia 24/11 [2023] a noite fomos visitá-lo em sua casa. Quando chegamos, ele estava dormindo. Ficamos conversando com Cleide, sua esposa e com Bia, irmã da Cleide.

Passados uns 40 minutos, Cleide o ajudou a levantar, para tomar remédio e ele veio caminhando do quarto para a sala.

Estava com uma crise de soluço há alguns dias...

Trocamos algumas palavras. Ele estava fisicamente debilitado, psicológica e emocionalmente abalado. Tomou o remédio e desse estas palavras para Paula e para mim: "Vocês me dão licença... preciso me recolher..." e voltou para o quarto.

Nove dias depois, Alê recolheu-se! Recolheu-se desta vida que conhecemos e que chamamos de "realidade". Cleide publicou em suas redes sociais, minutos depois dele partir: "Deus me deu, Deus tomou. Bendito seja o nome do Senhor", era o domingo 03/12 [2023].

No velório, ouvi: "ao menos não foram longos meses sofrendo..."

Uma pessoa boníssima. Realmente, não merecia qualquer tipo de sofrimento.

Descansou. Recolheu-se!

O grande problema, como sempre nestes casos, é de quem fica nesta realidade com a dor da ausência. A esposa, agora viúva, a filha, agora órfã de pai, os pais idosos que perderam o primogênito, irmão, sobrinhos, cunhados, concunhados, amigos do trabalho, da igreja, da vida...

A bíblia cristã, a qual tive como livro sagrado por quatro décadas, duas delas como cristão evangélico, registra que melhor é ir numa casa em luto que numa festa "pois a morte é o destino de todos; os vivos devem levar isso a sério", diz a continuação.

Devo discordar educada e respeitosamente.

Vivos devem viver. Viver intensamente, se assim o desejarem e tiverem saúde e condições para fazer. Ir a uma casa em luto, em respeito à dor dos que ficaram. Recolher-se quando sentir que é preciso, quando for necessário. O mundo já é cheio de restrições e dificuldades naturais. Não se pode deixar de fazer isto ou aquilo com medo do que vão pensar ou dizer. "Vamos nos permitir", pois um dia iremos nos recolher deste mundo.

Vamos amar! Semear amor, plantar amor, colher e recolher amor. Espalhar mais amor!

É preciso "festar" se tem desejo e possibilidade de fazê-lo, como escrevi. É preciso estar com aqueles e aquelas que colaboram com esta festa.

Cecília Meireles escreveu num contexto de desarmamento, de cultura de paz que: "Se fosse possível não ensinar a matar, - uma vez que para morrer todos nascemos já ensinados...". Desse modo, é preciso viver e festejar a vida! Pois a humanidade nasceu para morrer.

Triste fato! Nós, os vivos da vez, que lutemos para dar conta das ausências de pessoas queridas que já foram...



CARTA A CECÍLIA MEIRELES POR OCASIÃO DE SEU 122º ANIVERSÁRIO

Londrina-PR, 07 de novembro de 2023.

 


Querida Cecília,

         Escrevo esta carta, no dia do seu aniversário de 122 anos, para te dizer que pedi essa atividade para meus alunos do 5º Ano A, do reforço, da Escola Municipal Prof. Carlos Zewe Coimbra. Primeiro, eles escreveram um pequeno texto no caderno deles com sua biografia.

Desde que comecei como professor desta turma, eles foram informados do meu amor por você e por tudo o que você escreveu; eles conheceram alguns poemas do maravilhoso “Ou isto ou aquilo” e também outros poemas de outros livros.

Eu te conheci, conscientemente, aos 19 anos no ano de 2000, quando comprei o livro “Crônicas de Viagem, vol. 1”, ou seja, conheci primeiro sua prosa, só depois seus poemas.

Mas a verdade é que eu já tinha um livro seu de poemas na minha estante, uma antologia feita por sua filha caçula, Maria Fernanda. O livro era da biblioteca da escola onde estudei o Ensino Médio. Por algum motivo, o livro não voltou para a biblioteca e fará quase 30 anos que o livro está comigo.

Em 2007, quando fui pela primeira vez ao Rio de Janeiro, um dos meus objetivos principais da viagem era ir até o seu endereço, o último onde morou, Rua Smith de Vasconcelos, nº 30, no bairro de Cosme Velho.

Eu acreditei, de modo pueril, que, ao chegar na casa, alguém me recepcionaria e que me apresentaria e eu teria a oportunidade de conhecer o seu lar. Claro que isso não aconteceu. Tirei algumas fotos com uma câmera digital, fui embora meio triste, meio alegre.

Eu agradeço ao Universo por ter me apresentado a você e suas obras. Amo tudo, exatamente tudo o que você escreveu, o que já li e o que ainda não li, mas lerei um dia e tenho certeza que vou amar.

“Arte de ser feliz" e "História de Bem-te-vi” são as primeiras crônicas que tenho lembrança de ler e gravar em minha memória (depois de crónicas de viagem). Também gosto muito das crônicas “A 500 metros”, “Fim do mundo” e “Brinquedos incendiados”, mas como já escrevi, gosto de tudo o que você escreveu.

Os seus poemas italianos me fascinam e “Sugestão" é um poema que me marcou profundamente – “sede assim qualquer coisa,/ isenta, serena, fiel/ /não como o resto dos homens”. Também o poema “Reinvenção”, os versos, “a vida, a vida, a vida,/ mas a vida, só é possível reinventada”. Porém, você já sabe, amo tudo, tudo, tudo o que você escreveu.

Bem, para não me alongar muito, vou finalizar por aqui, feliz por poder comemorar seu aniversário de 122 anos hoje e de saber que você estará comigo todos dias aqui na Terra até o dia que em que eu virar poeira.

Muito obrigado por tudo!

 

André, seu leitor... 

domingo, outubro 08, 2023

"A BANDEJA DE SALOMÉ", DE ADRIANE GARCIA: NOTAS DE UM "JOVEM" ATEU

Farei igual ao Jack [Estripador]: vamos por partes!

1º) Não sou tão jovem de idade cronológica: nasci em janeiro de 1981, portanto, estou com 42 anos nesta data. Quando mais jovem, pensava, parecia e agia como um velho ranzinza. Fui melhorando ao longo dos anos, acredito. Um outro curioso caso de Benjamin Button, mas de pensamento, modo de entender, habitar e agir no mundo. Este mundo injusto e cruel!

2º) Sou um jovem ateu! Como eu cri no deus cristão, primeiro como católico - dos 9 aos 18 anos, depois como protestante - dos 18 aos 38, estou ateu no deus cristão e, por desconfiança, em qualquer outra divindade. Talvez, de modo poético, creio em Pachamama, ou adorarei crer - poeticamente - numa divindade que não exige nada, não prometa nada. Talvez, ainda, deva existir - poeticamente, uma Energia que nossa pequenez humana não pode dar conta, não consegue captar/capturar e portanto, não pode dar nome, nem nada...!

3º) As minhas notas sobre o livro "A bandeja de Salomé" são reflexos (reflexões) e reverberações que a leitura - minha, interior e pessoal, de poemas tão potentes causaram neste leitor, ex-cristão, crítico da vida e não de Literatura. Não tenho know how para nada, a verdade é essa!

Minha história com o cristianismo é cheia de peripécias. Meus avós maternos foram cristãos evangélicos pentecostais desde que me entendo por gente. Ternos, vestidos, bíblias debaixo dos braços, cultos fervorosos, orações em línguas estranhas. Na infância, a casa dos avós não tinha nem TV - caixa do demônio! Minha mãe fazia parte da orquestra da igreja, entretanto, sofreu punições por ter casado grávida (eu era o bebê). Com todos os traumas possíveis, dos julgamentos dos pais, dos "irmãos" na fé, minha mãe preferiu não ser fiel a nenhuma igreja. Seguiu a fé no deus cristão do seu modo particular, de casa.

Meu pai, avó e tios paternos, eram/são todos católicos apostólicos romanos por tradição, convicção ou comodismo. Na infância, tinha primos fervorosos, que moravam próximos de nós, assim, eu expressei o desejo de começar a frequentar a catequese para a primeira comunhão e tentei seguir o ritual - mesmo não me encaixando (não adorei a Virgem Maria, não fui devoto de nenhum santo católico, odiava me confessar ao padre e só o fiz duas vezes por obrigação aos rituais), até meus 18 anos.

Quando fui convencido - por minhas histerias, medos e crenças limitantes da época, que só havia uma única "religião" correta: a que pratica o fã clube de Jesus. Foram longos 20 anos, em três igrejas protestantes (duas em Marília-SP e uma aqui em Londrina-PR). O problema dessa galera é querer converter todo mundo para seu clubinho, apontando que o jeito de ser, habitar e agir no mundo das pessoas diferentes deles é errado, pecaminoso, blá, blá, blá... Eles são os carnívoros da "cadeia alimentar religiosa". Triste constatação, mas contra fatos não há argumentos!

Óbvio que nessa trajetória do protestantismo conheci pessoas incríveis, tive experiências maravilhosas, mas como aconselhou o chato do apóstolo Paulo é preciso "reter o que é bom".

Desse modo, os personagens dos poemas de Adriane Garcia, me são familiares, como para qualquer cristão que lê e estuda a bíblia. Infelizmente, esses "crentes fervorosos" não terão coragem de enfrentar a leitura dos poemas de Adriane. Se o fizerem, será apenas para reforçar que a poeta é uma blasfemadora.

Capa do Livro

Orelha do livro

Amei cada poema! Vibrei ao encontrar toda referência ao deus todo poderoso, assim mesmo, em minúsculo: deus. E, todo horror causado por ele ou em nome dele, ganhar uma lente de aumento ou foco a partir do ponto de vista das vítimas, especialmente das mulheres.

Citaria todos os poemas - aliás, senti falta no livro de um sumário com os títulos e suas respectivas páginas - mas isso é perfumaria. Sem contar, que é uma edição bilíngue - Português/Espanhol, com tradução de Manuel Barrós, um jovem peruano que também traduz Cecília Meireles - sempre ela, Deusa! - para sua língua materna. Como não vou citar todos os poemas, leiam o livro!

Vou tecer alguns comentários sobre aqueles que me chocaram! O primeiro, que conheci, inclusive, no pré-lançamento do livro, ano passado, por meio das redes sociais de Adriane, é "A metáfora de Agar", ou seja, a poeta resgata a história de Abrão, Sarai e a serva estrangeira, história que sabemos, nasce o conflito entre Ismael e Israel - cada qual entendendo que são o filho da promessa desse deus maluco. Escrevo um dia depois de novos conflitos entre palestinos e israelenses.

"Tudo são metáforas./ Mas onde encaixamos o estupro?" Adriane encerra o poema com esta pergunta que pode encerrar tantas outras histórias bíblicas ou não bíblicas de mulheres. Por exemplo "O testemunho das filhas de Ló", acusadas no relato bíblico de terem "coabitado" com o pai, relação incestuosa da qual nascem dois descendentes e, consequentemente, dois povos, inimigos dos israelitas: moabitas e amonitas.

"A cor dos olhos de Lia", a irmã "feia" e vesga de Raquel, quem Jacó amava de verdade, mas submeteu-se aos anseios gananciosos de Labão, pai de ambas. Enfim, essa novela mexicana, da qual descendem as doze tribos de Jacó, com quatro mulheres diferentes - Lia, Raquel e suas servas. Como a gente naturaliza esses procedimentos todos, no sentido, eram práticas da época, culturais, blá, blá, blá... Viva Adriane, que nos presenteia com outra perspectiva.

"A razão de Raabe", prostituta de Jericó, que sobreviveu à queda da muralha de Jericó, salvando sua família e entrando para a genealogia de Jesus. Que reviravolta, Adriane! Meu queixo caiu com o desfecho desse poema!

A tocante história - não deixa de ser - de Rute e Noemi, porém, revisitada, recontada pela própria Rute. "O nojo de Betsabé", aquela que Davi cobiçou e tomou, do soldado que depois morreu. Junto com um poema anterior "O espelho de Mical", ambos poemas demonstram como a maioria dos homens cis-héteros, se relacionam com o "sexo oposto". Só isso, sexo, mas amam outros homens!

"A confissão da outra mãe", poema que reescreve a disputa das duas mães resolvida pelo "sábio" rei Salomão, sobre o bebê que a OUTRA mãe roubou em função da morte do seu bebê. Foi um verdadeiro "plot twist"!

"O método da mulher de Ló", meu senhor da goiabeira, que CHO-CAN-TE e TO-CAN-TE, ao mesmo tempo e te leva a pensar em tantos modos de tirar a própria vida, por não suportar mais a opressão desse mundo - repitam comigo: injusto e cruel, especialmente com mulheres e crianças.

"O ódio de Herodias", "A palavra de Maria", "A generosidade da boa samaritana" e todos, encerrados com o poema que dá título ao livro: "A bandeja de Salomé". Mesmo que de modo literário, é satisfatório, ver que na bandeja de Salomé estão tantas cabeças, que usaram poder, influência, sobrenome, status social para oprimir mulheres, crianças e outros vulneráveis.

Eu, jovem ateu, encerro, as notas desta leitura impactante, de uma poeta contemporânea, cujo primeiro livro que li, em forma de e-book, "Estive no fim do mundo e me lembrei de você", poesia pura no título - que título é esse? Enfim, Adriane, tem a capacidade de me impactar com seu modo de entender, habitar e agir no mundo, este mundo injusto e cruel, que castiga a TODOS, mas fere mortalmente os que SENTEM!

segunda-feira, setembro 18, 2023

SOBRE "CÂNDIDO OU O OTIMISMO"

 Terminei de ler hoje (18/09/2023), o "Cândido ou o Otimismo", de Voltaire, depois de descobrir que eu tinha uma linda edição de 1983, com tradução de ninguém mais, ninguém menos de Mário Quintana, em minha estante pessoal (Voltaire - Contos, foto abaixo). Foi a amiga - hermana - Sílvia Brandão que me falou sobre este texto quando ambos habitávamos o "mundo invertido" em que fomos parar em maio de 2022.





É provável que nossa conversa versava sobre a positividade tóxica que permeia muitos dos nossos ambientes, seja por meio dos coaches ou de líderes "espirituais". Lembro-me de ficar com o nome de "Pangloss" gravado na memória dessa conversa e, é, segundo o texto altamente irônico e "improvável" de Voltaire, o filósofo com o qual Cândido confia seu modo de existir no mundo e enfrentar as tremendas dificuldades pelas quais passa até finalmente resolver seu maior dilema, com sua amada Cunegundes.





Entre tantos fatos e acontecimentos de lá para cá - da indicação da hermana Sílvia para eu encerrar a leitura, as muitas conexões cerebrais, na mudança de casa para o apartamento, veio um clique: tenho um livro de Voltaire na minha estante... quem sabe, por um lance de sorte, não esteja neste livro o "Cândido". Bingo!




É estranha a sensação de ler um texto escrito no século XVIII e, nesta edição que tenho, traz um texto introdutório com informações sobre o contexto em que foi escrito, o que favorece uma leitura mais significativa ou com detalhes que fazem a diferença no entendimento geral da obra.

Eu teria mil considerações sobre a experiência de leitura e seu conteúdo especialmente neste meu tempo de descrença em deus cristão ou qualquer outra divindade. Escrevo este texto um dia após receber a triste notícia do falecimento do meu tio e padrinho, Élio, irmão de meu pai. Mais chocante foi saber as circunstâncias em que foi encontrado. Escreverei outro texto sobre meu padrinho, em momento oportuno, um modo de tentar elaborar o luto.

Neste texto, o intuito é mostrar um único trecho do livro e a relação que fiz com um poema de Manuel Bandeira, que já postei duas ou três vezes nas minhas redes sociais, desde que o conheci. O trecho do livro é o que segue:

XII

Continuação das desgraças da velha

[...] Envelheci na miséria e no opróbrio, não tendo mais que a metade do traseiro, e sempre a lembrar-me de que era filha de um papa; cem vezes quis matar-me, mas ainda amava a vida. Essa ridícula fraqueza é talvez um dos nossos pendores mais funestos: pois haverá coisa mais tola do que carregar continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra? Ter horror à própria existência e apegar-se a ela? Acariciar, enfim, a serpente que nos devora, até que nos haja engolido o coração?" (p. 178).


É extremamente forte essa "imagem" sobre existir, especialmente, a existência de pessoas que padecem, sofrem, do início ao fim da vida neste plano (crueldade maior se existir outros planos!). Destaco o verbo "apegar-se" que se conecta direta e certeiramente com o poema "A vida assim nos afeiçoa" (Manuel Bandeira). Apegar-se à existência! Afeiçoar-se à vida! Destaco a primeira e última estrofe do referido poema:

Se fosse dor tudo na vida,/ Seria a morte o grande bem./ Libertadora apetecida,/ A alma dir-lhe-ia, ansiosa: 'Vem!

[...]

A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel...


Como escrevi acima, teria mil considerações sobre o texto de 1758/1759, repleto de reviravoltas - plot twist, diriam os mais novos, como aprendi, com os meus alunos universitários de outrora e acontecimentos mirabolantes. O final inesperado - pois em meu interior já tinha criado mil e uma finalizações drásticas, levando em consideração todo o enredo. Entretanto, o final ainda que inesperado, foi adequado, talvez.

Disse que citaria apenas um trecho - pois somos TODOS, SEM EXCEÇÃO, seres contraditórios - mas não quero finalizar o meu texto sem falar sobre o final de Cândido e à "conclusão" que seus companheiros e empregados chegam, inclusive Pangloss:

" - Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim.

- Tens razão - disse Pangloss -, pois, quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum*, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.

- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho; - é a única maneira de tornar a vida suportável." (p. 235/236).

E cá estou eu, fazendo o quê? Praticando filosofia barata...

P.s: em tempo: Pangloss vai tomar no c*

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* Latim ut operaretur eum: para servir


segunda-feira, janeiro 30, 2023

A SEDE SEM CURA: O GENOCÍDIO DOS YANOMAMIS

Quando tudo ou quase tudo nos afeta, como não sucumbir diante das atrocidades que foram cometidas pelos homens, como o Holocausto de mais de 6 milhões de judeus e as que seguem ocorrendo, como o genocídio dos Yanomamis?

"O mundo é de quem NÃO sente", escreveu Fernando Pessoa. Eu insisto em perguntar: e eu que sinto MUITO? Onde é o meu lugar? Sem nenhum ópio para acalmar ou proporcionar um fuga temporária desse suplício, desse martírio, desse inferno que é este mundo...

Todas as manhãs nestas férias, ao acordar e realizar meu ritual - banho, preparar o café, tomá-lo - venho para meu pequeno escritório, ligo o computador, ouço Nina Simone, Andrea Bocelli, Shakira, Aurora, The Cranberries, Whitney Houston e tantos outros... e abro o meu presente de Natal: "Obra Poética", de Cecília Meireles e, como uma bíblia, vou lendo e refletindo.

Quinta ou sexta-feira, cheguei ao Romanceiro da Inconfidência, obra monumental, lançada em 1953. Cecília Meireles, definitivamente foi uma superdotada, "comprometida com a tarefa", "habilidades acima da média" e "criatividade" a mil por hora (a la conceituação básica de superdotação, Teoria dos Três Anéis, de Joseph Renzulli).

Escrever em versos, agrupados por romances, a história da inconfidência mineira e seus desdobramentos, é, de fato, uma obra grandiosa. Cecília escreveu sobre seu processo de criação e escrita do Romanceiro:

"A duzentos anos de distância, embora ainda velados muitos pormenores desse fantástico enredo, sente-se a imprescindibilidade daqueles encontros, de raças e homens; do nascimento do ouro; da grandeza e decadência das Minas; desses gráficos tão bem traçados de ambição que cresce e da humanidade que declina; a imprescindibilidade das lágrimas e exílios, da humilhação do abandono amargo, da morte afrontosa – a imprescindibilidade das vítimas, para a definitiva execração dos tiranos. E para que, no fim da partida – como em todas as parábolas – neste dialogo do céu com a terra, fossem obscurecidas para sempre as glórias efêmeras, e, por toda a eternidade, exaltados e glorificados os que padeceram opressão e martírio…"

Fonte: clique aqui

Bem, faço essa introdução apenas para explicar como as tragédias se repetem. Mudam-se circunstâncias, lugares, épocas, entretanto, há os que causam dor, flagelos e mortes e os que sofrem tudo isso... As vítimas atuais (?) são os Yanomamis. Os algozes, pode parecer que são os financiadores dos garimpos ilegais, porém, os piores são aqueles que tinham poder para evitar, mas não só se omitiram, como incentivaram os garimpos e a dizimação dos Yanomamis. 

Todos os que votaram e defenderam - e continuam defendendo bolnossauro e seus asseclas, têm sangue Yanomami nas mãos, mais de 500 crianças só neste período dos últimos três a quatro anos. O meu ódio a essas pessoas, como damares - a louca da goiabeira, menino veste azul, menina veste rosa, infelizmente não muda os fatos... Até desejamos ter superpoderes para explodir a cabeça deles, como aquela guria da série de uma temporada só, que a Netflix deixou a gente passando vontade por não dar continuidade...

As lágrimas que chorei ontem (29/01/2023) assistindo à reportagem da Sônia Bridi no Fantástico não significam um milésimo de nada em toda essa tragédia... É como assistir ao inferno em pleno funcionamento e você só tem a impotência te enforcando...

Pois bem, escrevo esse texto para nada também... apenas para diminuir a febre de sentir, como prescreveu Fernando Pessoa. Escrevo para registrar a analogia dos primeiros romances da obra fenomenal de Cecília, da extração desenfreada em Minas com os garimpos ilegais em Roraima.

O título deste texto é um empréstimo da penúltima estrofe do ROMANCE I OU DA REVELAÇÃO DO OURO: "Que a sede de ouro é sem cura,/e, por ela subjugados,/ os homens matam-se e morrem,/ ficam mortos, mas não fartos".

Porém, quero deixar na íntegra o ROMANCE II OU DO OURO INCANSÁVEL:

Mil BATEIAS vão rodando
sobre córregos escuros;
a terra vai sendo aberta
por intermináveis sulcos;
infinitas galerias
penetram morros profundos.

De seu calmo esconderijo,
o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra,
prestígio, poder, engenho . . .
É tão claro! — e turva tudo:
honra, amor e pensamento.

Borda flores nos vestidos,
sobe a opulentos altares,
traça palácios e pontes,
eleva os homens audazes,
e acende paixões que alastram
sinistras rivalidades.

Pelos córregos, definham
negros a rodar bateias.
Morre-se de febre e fome
sobre a riqueza da terra:
uns querem metais luzentes,
outros, as redradas pedras.

Ladrões e contrabandistas
estão cercando os caminhos;
cada família disputa
privilégios mais antigos;
os impostos vão crescendo
e as cadeias vão subindo.

Por ódio, cobiça, inveja,
vai sendo o inferno traçado.
Os reis querem seus tributos,
— mas não se encontram vassalos.
Mil bateias vão rodando,
mil bateias sem cansaço.

Mil galerias desabam;
mil homens ficam sepultos;
mil intrigas, mil enredos
prendem culpados e justos;
já ninguém dorme tranquilo,
que a noite é um mundo de sustos.

Descem fantasmas dos morros,
vêm almas dos cemitérios:
todos pedem ouro e prata,
e estendem punhos severos,
mas vão sendo fabricadas
muitas algemas de ferro.



As bateias para garimpo

"Por ódio, cobiça, inveja,/ vai sendo o inferno traçado"... "É tão claro! [o ouro] e turva tudo:/ honra, amor e pensamento"... turva os rios, contamina com mercúrio, mata os peixes, adoece os humanos que ali vivem...

Cada vez mais entendo os mendigos, os loucos... é preciso se desligar, se desconectar para não adoecer - contraditório, não é mesmo, pois para a sociedade perfeita, cristã, ilibada, justa, estes são os doentes, junto com o pobres, negros, homossexuais, maconheiros ou qualquer outro grupo minoritário ou excluído por alguma característica, que desonram a ideia unívoca de vida, defendida por quem tem o poder de produção e de manutenção de sua narrativa exclusiva/excludente.

Vou encerrar tentando reproduzir a fala da enfermeira entrevistada ontem na reportagem do Fantástico: "eles irão encontrar um modo de regenerar a terra, com a sabedoria deles, mas primeiro, precisam ter a saúde reestabelecida; eles encontrarão o caminho..." (escrevo de memória, o que ficou em mim, do que ouvi ontem...). Há um poder nessas palavras! Sim, eles encontrarão o caminho da regeneração... a que custo... a que custo...



quarta-feira, janeiro 25, 2023

COMO BICHOS QUANDO SE LEVANTA UMA PEDRA

Na pandemia, especialmente nos primeiros meses, eu li muito. Muito mesmo! Um dos livros que devorei foi o "Livro do Desassossego", de Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. É um livro que me impressionou bastante, para uma pessoa de alma desassossegada que eu estava desde 2017/2018, vivenciar o horror dos primeiros meses da pandemia, pessoas morrendo, sem poderem respirar, por conta de um ser microscópico, um vírus, sem vacina eficaz à época.

Tudo isso, somado e multiplicado a outros fatores externos e internos, que vão se retroalimentando, um interferindo no outro. Presos (que delícia!) dentro de casa - e fomos "privilegiados" por ficar a pandemia numa "mansão", passei a odiar dias ensolarados, céu azul, nuvens brancas... Os dias nublados e chuvosos combinavam e ainda combinam mais com meu interior.

Dedicarei este texto, em efeito retardado, às minhas impressões ou destaques de trechos do referido livro. Conheço pouco, muito pouco de Fernando Pessoa, porém, este pouco que li - não apenas no livro, mas outras informações sobre sua vida, já me impressionam sobremaneira. Com certeza, Fernando Pessoa, foi um sujeito com muitas sobre-excitabilidades (ler Kazimierz Dabrowski ou estudiosos desse psiquiatra polonês). São cinco: sobre-excitabilidade emocional, imaginativa, intelectual, psicomotora e sensorial.

No caso de Pessoa, claro que são apenas especulações minhas, emocional, imaginativa e intelectual, com certeza, mas a sensorial, com base no que li no diário de Bernardo Soares, é muito evidente. O modo como ele nomeia e descreve sensações, o incômodo de quase todas delas, por isso sobre-excitabilidade, over, over, over...

"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir", é um ótimo exemplo e uma construção com a qual me identifico demais. Escrever é isso: diminuir a febre de sentir. Nos idos de 1999 ou antes, escrevi um "poema" - entre aspas mesmos: "Eu, poeta que não sou" e que contém essa ideia de sofrer a vida e a necessidade de escrever sobre ela.

"A poesia me perturba assim:/ Se vejo o pôr-do-sol, primeiro admiro,/ depois ele me persegue até sobre ele poetar./ Se me pego preso à luz da lua, primeiro me deixo levar,/ depois ela não sai de mim até acalmá-la na ponta da caneta."

"Viver é não pensar" (p. 109). "O coração, se pudesse pensar, pararia" (p. 16). "O mundo é de quem não sente" (p. 257). Nesta última frase, o autor prossegue: "A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade". "Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos - um poço fitando o Céu" (p. 25). "Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos" (p. 101) - coloquei esta última como epígrafe no meu perfil de whatsapp hoje (25/01/2023).

Tentei no final do ano passado, reler o livro e consegui até um tanto, destacando com marca texto algumas dessas passagens... não consegui reler até o final... Ontem decidi buscar uma passagem específica que fiquei devendo numa interação de comentários do Facebook, com uma ex-aluna querida, a Grazi Pestana. Na postagem, um trecho do Carl Sagan e eu comentei que lembrava uma passagem do "Livro do Desassossego" e, acredito que não fiz o retorno a ela, de que encontraria o trecho e a enviaria.

De tudo o que li na primeira vez, o trecho a seguir, especialmente a imagem que Pessoa descreve, passou a habitar minha alma e coração, imbricada com minha descrença do mundo - tão supérfluo!, de deus, céu, inferno, a parafernália cristã toda - e aqui não é um ataque à fé de ninguém, apenas um reflexo natural de quem esteve pouco mais de 20 anos dentro desse grupo religioso.

"[...] gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido" (Bernardo Soares, "Livro do Desassossego", p. 112). É isso! É exatamente isso que somos.


O início desse parágrafo é impressionante: "Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes remexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande pedregulho abstrato do céu azul sem sentido".

Fernando Pessoa honrou sua palavra, soube existir para além da vida terrena, por meio da "voz escrita" e, neste livro especialmente descreve imagens intelectuais perfeitas.

Conheci um poema nas redes sociais ano passado, de uma poeta mineira. Busquei informações sobre ela, óbvio... vou tentar resgatar aqui, pois neste momento que escrevo, sei o que quero dizer, mas minha memória está prejudicada... Depois de uma pesquisada no Facebook (postagem minha de 05 de abril de 2022), encontrei o poema e a poeta: "Teologia II", de Orides Fontela (1940-1998):


Associei o poema com essa passagem de Bernardo Soares: "Haja ou não deuses, deles somos servos" (p. 30). Por minha vez, também influenciado pela leitura mais recente (início de 2022), dos livros de Yuval Noah Harari: "Sapiens: uma breve história da humanidade" e "Homo deus: uma breve história do amanhã", escrevi "Haja Deus":


Outras passagens que destaquei entre ontem e hoje, nesse retorno ao "Livro do Desassossego": "[...] O mal da vida, a doença de ser consciente com o meu próprio corpo e perturba-me" (p. 95). A altíssima sensibilidade, como se o corpo fosse uma esponja, uma antena, um imã de sensações e ele tentou controlar a avalanche constante das sensações produzidas de seu contato com a existência. Acredito que por essa hipersensibilidade, a febre de Pessoa era constante.

"[...] Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das códeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes" (p. 69). Tive que procurar "códea" no dicionário, e trago para você minha leitora, meu leitor: "a parte exterior do pão, do queijo, das massas endurecidas pelo cozimento".

Vários exemplos de mal-entendidos com a realidade podem ser levantados aqui: desde a ideia da Terra ser o centro do Universo ou do Sistema Solar, até o problema mortal com a ideia de "deus monoteísta" judaico-mulçumano-cristão. Não bastasse as brigas e disputas "internas", como a briga de Esaú e Jacó, anteriormente, tem Isaque e Ismael, ambos filhos de Abraão - o mais velho (Ismael) com Hagar e, Isaque, com a idosa Sara. E a disputa para quem é o filho legítimo, herdeiro do Deus Poderoso, temos o conflito secular e presente/permanente em pleno século XXI, como a Faixa de Gaza.

Sobre o relato bíblico de Hagar, me ocorre um poema chocante, de Adriane Garcia, poeta mineira, que nos oferece outra perspectiva dessa história: a perspectiva da serva, da própria Hagar.

Lembrei de outros versos de Cecília, do poema "Contemplação", que carrega essa ideia de que o que fazemos tem consequências e sequelas, imediatas e seculares: "Tão poucos somos, - e tanto causamos,/ com tão longos ecos!/ Nossas viagens têm cargas ocultas, de desconhecidos vínculos". 

O importante aqui é a construção que Pessoa nos presenteia: vivemos baseados em pequenos mal-entendidos e enchemos a boca para dizer "eu sou..., você não é...", sendo que nada, nem ninguém não é, pois tudo é ilusão...

"De repente estou só no mundo. Vejo tudo do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro" (p. 84/85). Que imagem! Telhado espiritual, uau! E faço mil conexões... Albert Camus que escreve: "Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente". Afinal, um Filósofo! Prefere a consciência. Muitas passagens sobre solidão e o sentimento de ser estrangeiro de Cecília Meireles ("Desejo de regresso", logo abaixo). O próprio Camus escreveu "O estrangeiro", que é essa a ideia, estrangeiro de si, do mundo, da vida...

Desejo de regresso

Deixai-me nascer de novo,
nunca mais em terra estranha,
mas no meio do meu povo,
com meu céu, minha montanha,
meu mar e minha família.

E que na minha memória
fique esta vida bem viva,
para contar minha história
de mendiga e de cativa
e meus suspiros de exílio.

Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero memória acesa
depois da angústia apagada.
Com que afeição me remiro!

Marinheiro de regresso
com seu barco posto a fundo,
às vezes quase me esqueço
que foi verdade este mundo.
(Ou talvez fosse mentira…)

É como me sinto! Estrangeiro! Só no mundo... e, novamente, isso não tem a ver com "nossa, nem sua esposa e filhos te dão sentido de pertencimento?"... Espero que façam uma análise mais profunda do que escrevo, pois é exatamente isso que estou tentando dizer. Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita... Exercício difícil. Se o foi para Pessoa, ele se empenhou tanto, que conseguiu.

Manual Bandeira, no poema "A vida assim nos afeiçoa", na última estrofe, em poucas palavras, ele define a dicotomia de viver (que maravilhoso! que terrível): "A vida assim nos afeiçoa,/ Prende. Antes fosse toda fel!/ Que ao se mostrar às vezes boa,/ Ela requinta em ser cruel" ("Estrela da vida inteira: poesias reunidas", Manual Bandeira, p. 20/21). A vida prende, mesmo que seja um inferno, nos afeiçoamos nas pequenas bolhas de esperanças, que logo estouram... por isso a vida é requintadamente cruel!

Cecília Meireles, na última estrofe de "A flor e o ar" escreve: "Neste destino a que vim,/ tudo é longe, tudo é alheio./ Pulsa o coração no meio/ só para marcar o fim" ("Retrato Natural", Obra Poética, p. 362). Tudo é longe! Tudo é alheio! Hoje eu li, de Cecília também: "Meus olhos andavam mais longe do que nunca,/ voavam, nem fechados nem abertos,/ independentes de mim,/ sem peso algum, na escuridão/ e liam, liam, liam o que jamais esteve escrito/ na rasa solidão do tempo, e sem qualquer esperança,/ - qualquer" (última estrofe do no. "Dois", "Doze noturnos da Holanda", Obra Poética, p. 382).

Hoje pela manhã, levei Benjamin ao HC-UEL para tirar sangue... As veias dele não facilitam o trabalho para a retirada do sangue, ou seja, muitas furadas, sem sucesso e muita dor... e não estou falando só de hoje, que foram duas furadas sem sucesso, sendo a segunda que o fez derramar lágrimas pesadas. E ele não é a criança-comum que berra, esperneia, como num extinto natural de sobrevivência para fugir desse lugar traumático, que causa dor. Como um cordeiro vai para o abatedouro, ele permanece quieto, parado, tenso sim, e quando a dor é terrível, brotam as lágrimas de uma tonelada cada uma, pesadas porém mas silenciosas.

Como disse para a jovem enfermeira (no jaleco estava escrito biomédica) que furou as duas primeiras vezes: desde o primeiro dia de vida, 14/06/2014, ele é furado. Passou pela tentativa de extração do liquor da medula óssea. Eu estava lá e ouvi os berros daquele pequeno bebê que acabara de sair do ventre materno - por conta da toxoplasmose congênita, e até a alta com 2 anos e meio, muitas furadas. A enfermeira Vera resolveu a questão hoje. Apalpou, procurou, sentiu a veia e terceiro furo foi certeiro. Levantei as mãos aos céus: Viva a Vera! Benjamin voltou mais silencioso no trajeto de Uber...

Amo meus filhos e por amá-los tanto, me arrependo de tê-los tirados seja lá onde estavam para virem sofrer nesse inferno que chamamos Terra. Anseio para que ganhem ferramentas emocionais, intelectuais, espirituais - e nunca religiosas, para saberem minimizar as sequelas dos sofrimentos terrenos...

Bem, por enquanto é isso. Felicidade e ser consciente são incompatíveis mesmo, Camus. E para terminar com mais uma ideia de Bernardo Soares, afinal, quem me trouxe para esse texto, na tentativa de diminuir a febre de sentir: "Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez" (p. 154).

terça-feira, janeiro 17, 2023

A NETA

Não é segredo que desde o meu primeiro contato com a obra de Cecília Meireles, foi amor a primeira lida. Eu tinha 19 anos de idade (nos idos do ano 2000). Vou escrever o texto e tentar ao longo dos dias ir alimentando com imagens, como por exemplo, do recorte do jornal local (Marília-SP), uma pequena coluna escrita por uma professora da Unesp - que no ano seguinte seria minha professora no curso de Pedagogia, na disciplina História da Educação. A nota era sobre as impressões de leitura da professora do livro recém lançado - "Crônicas de Viagem".


"Quero ler esse livro!". Fui até a livraria do centro da cidade e, como não tinha a pronta entrega, fiz o pedido. Alguns dias depois ligaram avisando que o livro estava disponível. Que grande aquisição foi aquele livro. Um verdadeiro tesouro! Apaixonei-me por aquele estilo todo particular e excepcional de narrar pessoas, lugares, sentimentos e emoções de estar/passar por aquelas paisagens e os aprendizados com aquelas pessoas, situações, circunstâncias.

O meu exemplar de "Crônicas de Viagem - volume 1", eu presenteei a uma grande amiga, acredito que quando ela completou 1/4 de século - agora essa amiga está perto de completar meio século. O fato de presenteá-la com esse tesouro particular é uma demonstração de quanto essa amiga era e é importante em minha vida.

A verdade é, preciso confessar - acredito que já confessei em outro momento - o primeiro livro de Cecília Meireles que chegou até mim, foi no Ensino Médio, empréstimo da Biblioteca da Escola Pública em que estudei - E. E. Antônio Augusto Netto, Rua Carlos Santili, 245 - Parque São Jorge, em minha cidade natal. O número 45 dessa mesma rua foi minha residência por 27 anos, até eu me casar e sair da casa dos pais. Eles moram lá até hoje. A "confissão" é que eu não consegui devolver o livro até hoje, tão penetrante e poderosa foi a descoberta daqueles poemas!

Anos mais tarde, a amiga querida Tânia Tolentino, sabendo do meu amor pela Poeta Maior da Língua Portuguesa, presenteou-me com o mesmo livro, outra edição mais nova, com dedicatória, tornando cada exemplar único, ainda que tragam o mesmo conteúdo. Estou descrevendo sobre "Melhores Poemas", uma seleção de Maria Fernanda, a terceira filha de Cecília Meireles, da Editora Global (8a. edição, de 1996, o primeiro. 14a. edição, de 2002, o segundo).




Há dois anos fiz uma postagem aqui no Blog, com uma relação dos livros que tinha até então em minha estante. De lá para cá, "novos" livros chegaram, o que significa que preciso atualizar aquela relação. Foi naquela ocasião, também por conta do meu aniversário, que ganhei uma "Cecilinha" linda, uma boneca feita por minha esposa, com detalhes de roupas e acessórios - como o colar e pulseira, incríveis.


Porém, o objetivo hoje é falar sobre a chegada de um livro, ontem, trazido pelo carteiro. Um presente. O remetente postou dia 06/01 e a intenção era chegar antes do meu aniversário (15/01). Chegou na tarde do dia seguinte, uma segunda-feira. O dia da chegada do livro até minhas mãos realmente não importa. O importante é que agora ele é, como eu disse para a pessoa, um dos exemplares mais preciosos da minha coleção.

"Flor de Poemas" eu conheci num empréstimo realizado em 2019 na biblioteca da UTFPR em Londrina, onde trabalhei por breve período (1 ano e oito meses). Achei tão maravilhoso! Ano passado encontrei um exemplar no sebo aqui em Londrina e adquiri, escrevi assim no livro: "André Coneglian, Londrina-PR, 29 agosto 2022, Sebo Capricho. Mais um exemplar precioso para minha coleção especial de Cecília; eu emprestei um exemplar parecido da biblioteca da UTFPR, quando fui professor lá (2019)".


Esse exemplar foi minha companhia por alguns meses lá em Porto União-SC, quando vivi sozinho, em razão do trabalho. Vejo agora que é a 5a edição, 1972. O exemplar mais "novo" de "Flor de Poemas" é a 6a edição, de 1983, com uma dedicatória da neta de Cecília Meireles. Sim! Fernanda Maria Correia Dias, conhecida como Fernandinha Meireles.


Em setembro de 2021, em função de um evento da Editora Scortecci, para comemorar o 120o. aniversário de nascimento de Cecília Meireles, divulgado no Facebook da minha querida professora Maria do Rosário Longo Mortatti, soube que a neta da poeta estaria no evento (online, em função da pandemia). No mesmo momento, levado pela emoção, enviei uma mensagem no direct do Instagram e, sem demora, ela respondeu e já me convidou para uma Live para celebrar os 120's aniversários de Cecília. Lives que Fernanda estava fazendo antes e seguiu fazendo. Encontros maravilhosos entre a neta e leitores, amantes, pesquisadores de Cecília Meireles.

Eu sabia da existência de um neto de Cecília Meireles - provavelmente o neto mais velho, bem perto de mim, ou seja, morando em Londrina. Soube por uma aluna, já professora, num curso de capacitação na UEL, ao declarar meu amor pela poeta, essa aluna levantou a mão e disse que tinha se consultado com um médico, neto de Cecília. Meu desejo - e expressei isso, na sala de aula: "se ele for ginecologista, ainda assim vou marcar uma consulta, só para ter a oportunidade para estar perto do DNA de Cecília Meireles". Ao buscar informações sobre o fato, acabei desistindo da ideia...

Desejo um dia - e espero que seja logo, ir ao Rio de Janeiro pela quarta vez - sendo que nas duas primeiras, fui até a frente da casa de Cecília, em Cosme Velho, 2007 e 2009 - e poder me encontrar com Fernanda, tomar um café, conversar, rir, ouvir mais histórias sobre sua avó e madrinha de batismo, tirar uma selfie juntos... Enfim, sonhar não paga imposto!

No evento da Editora Scortessi tive o privilégio de ser sorteado e ganhar o livro de uma das pesquisadoras participante da mesa, o livro "Estudo crítico da bibliografia sobre Cecília Meireles", de Ana Maria Domingues de Oliveira, Editora Humanitas/FFLCH/USP, 2001.


Sei que é um presente do Universo. Nestas férias fiz o curso on-line "Escrita de roteiro para cinema e TV", com o roteirista chileno Julio Rojas, na Plataforma Doméstika e foi incrível, saber as nuances e especificidades da escrita de um roteiro. Tudo por conta do desejo de escrever um roteiro sobre vida e obra de Cecília Meireles. Mais um grande e ousado sonho!

Em 2018, se não me engano, escrevi em minha agenda, o desejo de criar um projeto envolvendo o Universo de Cecília. Vou buscar a agenda para trazer aqui também. Juntar as evidências do Universo dizendo sim e sim para mim. Ainda bem que de lá para cá, evoluí mais um tanto. Já não há a necessidade de explicar para seu ninguém minha devoção a Cecília. Jesus, você foi "o cara", todavia, o seu "fã clube", especialmente aqui no Brasil, tem denegrido muito sua imagem. Sinto muito!



Muito obrigado, Fernanda, a neta. Tão gentil! Com sua caligrafia, escreveu na folha de sulfite branca que envolvia o livro, protegido por dois sacos plásticos transparentes: "Exmo Sr. Dr. André Coneglian" e meu endereço... Minha cara, não sou excelentíssimo, nem senhor e doutor sou, mas numa área específica do conhecimento. Gosto da ideia de que mais ignoramos do que sabemos. Sou um intensamente apaixonado pelo Ser Humano Cecília Meireles, ser humano que transformou-se em Entidade, Deusa que sempre foi!




quarta-feira, janeiro 11, 2023

21 EM CADA PERNA: meu aniversário está próximo

Daqui há quatro dias completo 42 anos de idade - 21 em cada perna. Quatro décadas e dois anos é a minha soma. Morando os últimos meses sozinho lá no sul do Paraná, mais precisamente, no norte de Santa Catarina, meu kitnet era vizinho de uma funerária, que depois saiu do local, permitindo que a padaria expandisse. Entretanto, ali no centro é possível encontrar outras duas ou três - senão mais funerárias. A maior concentração de funerárias, barbearias e petshops do Brasil, segundo minha própria percepção (fonte: vozes da minha cabeça).


Chegar quase onze horas da noite, depois de dar aula, abrir o pequeno portão, passar pelo corredor, cujas janelas eram da própria funerária. A solidão naqueles dias era gigante e fez-me pensar e repensar no sentido da existência com muito mais intensidade - mais do que o comum.

Estacionamento exclusivo da funerária, minha vizinha

Funerária um pouco mais a frente, na mesma praça

Em anos passados escrevi sobre velórios. Um texto específico sobre a morte da Nina, mãe da Gisele, que estudou comigo no Ensino Médio. Éramos vizinhos de bairro. Eu morava na Rua Carlos Santili, 45. Nina e família moravam na esquina das ruas Luís Rodolfo Miranda e Olar Durigheto. Naquele texto, uma das reflexões que levanto: estarei em quantos outros velórios? Quem estará no meu velório?


Pois bem, não sei quem estará no meu velório, nem quando será, mas sei que no meu velório quero leituras e declamações dos poemas - ou crônicas - de Cecília Meireles. Os presentes que quiserem agradar este ser hoje consciente e que escreve nesse instante - meu corpo será apenas uma concha vazia, como escreveu Edna Adan Ismail, todavia será uma maneira de espalhar poesia, artigo de "luxo", num dia aparentemente triste. Fernando Pessoa escreveu que para ele, o cadáver é como um "trajo", o corpo é como o "terno único" e "alguém se foi embora e não precisou levar aquele fato único que vestira".

Os poemas de Cecília são a expressão da perfeição da imperfeição humana. Poeta que escreveu sobre a brevidade da vida e a iminência da morte terrena de modo tão sublime. Um morto no caixão não manda em nada, mas, registro aqui: leiam poemas de Cecília Meireles em meu velório, dure ele uma hora, dez ou 24 horas (desnecessário!!).

Agora vou escrever sobre o passado.

Nasci no século XX. Amo números romanos, seu funcionamento e lógicas diferenciadas dos números arábicos. Eu criei uma forma idiota para conseguir recordar alguns como "linquenta" (L = 50, cinquenta) ou "dinhentos" (D = 500, quinhentos). I, V, X, C e M eram mais fáceis de lembrar, sendo C e M diretamente relacionados.

15 - 01 - 1981

Era uma quina-feira, 18h40, Maternidade Maria Isabel Sampaio Vidal, em Marília-SP, se acreditarmos nos registros. Devo ter registrado em algum texto minha estranheza em perceber que nasci numa cidade relativamente jovem, em janeiro de 1981, Marília contava com 51 anos de emancipação.


As opções de nomes que minha mãe escolheu eram: André Luís, Álvaro e Paulo Henrique. Amo meu nome - ou me acostumei a ele. Uso Álvaro como pseudônimo em pesquisas que participo. Paulo Henrique é um estranhamento, mas se tivesse sido a opção da minha mãe, eu diria o mesmo de "André Luís" hoje. "A", primeira letra do alfabeto ocidental. Janeiro - primeiro mês do ano ocidental. Minha data de nascimento possui o número 1 no dia, mês e ano. Convenções! Tudo convenções de época, cultura, circunstância. Janeiro e fevereiro foram incluídos no calendário romano (calendário juliano, somente em 46 a. C., como acabo de pesquisar e ler na Wikipedia).

42 anos parecem tantos anos... Porém, divididos em décadas:

1a) 1981-1991, 2a) 1991-2001, 3a) 2001-2011, 4a) 2011-2021...

Na primeira década, fui bebê, criança; na segunda, fui basicamente estudante; na terceira, terminei o mestrado, casei e fui pai do Lorenzo; na quarta, terminei o doutorado, mudamos para Londrina, Benjamin nasceu e mais dois anos de pandemia do coronavírus...

Dentro de cada década, preenchida com vivências, experiências, aprendizados, traumas... Toda a vida fui intenso, sensível ao extremo, vulnerável a toda e qualquer interferência e não precisava ser nada muito drástico. Não por acaso, meu apelido dentro de casa foi "manteiga derretida"; na vizinhança e escolas, os "apelidos" eram mais incisivos: bichinha, viadinho, florzinha... Numa discussão na 5a série, então com 11 anos, na qual eu estava defendendo uma outra aluna de ser passada para trás, a Miléia disse que eu não morreria, pois "bicha não morre, vira purpurina"...

A ponta do meu dedo indicador carrega uma cicatriz por uma desobediência e arte - uma das poucas que cometi, na primeira década. Chegou uma visita em casa, aproveitei a distração da mãe, para pegar a faca e cortar o bambu verde, para construir pipas - que eu não empinava, com medo da força do vento.


Todos esses atropelamentos, determinaram os encaminhamentos para as décadas seguintes. Uma das minhas memórias mais antigas, quatro ou cinco anos de idade, estava só de cuequinha e chinelo, sentei no degrau do quartinho de bagunça e levei uma ferroada de marimbondo no bumbum. É como se pudesse sentir a dor e lembro que chorei muito. Com sete anos tive que ir ao hospital para expurgar um furúnculo gigante no pescoço... lembro da gritaria e do desespero do meu pai, tentando meu acalmar...

A segunda década da minha vida, como escrevi, fui basicamente estudante do Ensino Fundamental, Médio e Técnico. Destaco o período que minha mãe entrou em alguns consórcios com um biscate conhecido (Elias e sua belina) que vendia de lençóis, colchas, roupas a eletroeletrônicos e, justamente por isso, tivemos nosso primeiro e único micro-ondas, bem como nosso primeiro e único videocassete.

Ele é o ponto central aqui! Meus finais de semana, caminhava até a Avenida João Ramalho para a Hobby News Videolocadora. Dependendo do dinheiro disponível para o aluguel das fitas VHS, eram duas a quatro por fim de semana. Durante esse período, comprava a revista SET e criei, num caderno universitário usado, uma espécie de catálogo: uma lista enumerada dos filmes que já tinha visto, recordada no início da lista e depois alimentada/atualizada conforme ia assistindo aos filmes, alugados ou vistos na TV aberta.

Da minha casa até a videolocadora, caminhando, uns 10 minutos

Depois, nesse mesmo caderno, criei páginas para meus atores favoritos, como Whoopi Goldberg e na frente de seus nomes indicava os números dos filmes que participaram. Na minha lista, por exemplo, "A cor púrpura" era o filme número um. 2."O Rei Leão", 3."Lua de Cristal", 4."Ghost, do outro lado da vida", 5."Inimigo Meu" (com Dennis Quaid, meu deus, preciso rever esse filme pela milésima vez, pois as 999 vezes anteriores foram nessa segunda década de vida), 6."Corina, uma babá perfeita". Em frente ao nome de Whoopi Goldberg estava os números: 1, 4, 6... Dennis Quaid: 5; Ray Liotta: 6...

No filme "Corina...", uma babá negra e um viúvo branco, nos anos de 1950 nos EUA, se apaixonam e lembro como hoje uma fala racista da mãe ou avó do homem branco, algo como: um pássaro e um peixe podem se apaixonar, porém, onde farão o seu ninho?".

Fiz questão de focar nessa minha paixão juvenil por filmes, assistir filmes, saber sobre seus bastidores e os atores, comprar a revista, tinha uma coleção de capas de VHS - quatro por revista, que era uma publicação mensal, pois recentemente, iniciei um curso online "Escrita de roteiro para cinema e TV" e estou "feliz" com o que tenho aprendido. "Feliz" entre aspas significa "feliz, sem muita empolgação ou expectativas", ou seja, uma felicidade racional, não emocional. Satisfeito com o que tenho aprendido. Ciente de que sou um amador, meu senhor, quanta coisa para ver e aprofundar!

No livro que escrevi e publiquei no início de 2020, escrevi nas páginas 79/80: "Pastor Alexandre, que celebrou nosso casamento, disse que nossa história daria um bom livro. Eu penso em um roteiro de filme, oportuna motivação para retratar a relação entre Brasil e Bolívia, brasileiros e bolivianos e a nossa história como pano de fundo. Eu tenho uma imaginação muito fértil: 'o fantástico mundo de André'. Nesse caso, as histórias já estão prontas, fico imaginando quais delas selecionar e como serão as cenas, sets de gravação, como será a escolha dos atores mirins que farão Paula e André na infância".

Engraçado ler isso hoje. Aqui eu era o roteirista, o diretor geral, o produtor, o diretor de elenco... Foi a década mais acentuada do "Menino do Quarto", solitário, de casa para a escola, da escola para casa. No quarto eu lia, escrevia, desenhava, pintava, fabricava meus livros e preenchia meus diários, assistia a meus filmes (na sala), mas logo corria para meu lugar seguro.

A terceira década foi a de maior transformação: o Menino do quarto saiu do quarto, entrou na universidade - como eu amei aquele ambiente acadêmico-científico, a igreja e os grupos me ajudaram a ganhar confiança e seguir com meus novos objetivos, avançando, superando os anos anteriores de timidez patológica e solidão extrema.

A quarta década seguiu repleta de mudanças. Mudança de cidade/Estado, trabalho, teve a toxoplasmose congênita do Benjamin e quando o contrato para professor PSS na UEL, além de deteriorar, teve a mudança de chefia do Departamento de Educação (2018-2020), colaborando e muito para o desmoronamento da ilusão que eu tinha de tudo, até então. A única estabilidade, minha âncora foi a família: Paula, Lorenzo e Benjamin, apesar das tempestades internas e externas, que sofria e sigo enfrentando.

Próximo de completar meu quadragésimo segundo verão, pois nasci no hemisfério sul desse planeta, portanto, início do verão, sou um adulto relativamente realizado. Afinal, o que é sucesso? Questionei lá no livro, em 2020. Marido, pai, professor, ainda pago os boletos, aos trancos e barrancos, mas seguimos. Como indivíduo, sujeito psíquico, estou perdido, em desintegração, buscando uma nova estabilidade (sabidamente ilusória). E isso não é culpa de ninguém, nem minha. Todas as circunstâncias, eventos, fatos dessa minha vida trouxeram-me até aqui...

Quem sou eu? Para que vim? Para onde vou? Qual é o sentido de tudo? Essas perguntas-fantasmas, tão velhas quanto o homem e sua consciência da existência humana, respondidas e conformadas com momentos históricos, religiosa ou filosoficamente. Sou apenas mais uma pobre alma perdida, atormentada por esses fantasmas. Os religiosos, especialmente os radicais com os quais convivi das décadas, dirão que é justamente o que ocorre com quem se desvia, sai do caminho que é jesus, apostata da fé, blá blá blá blá... Coitados. tem pessoas muito boa nesse meio, poucas, raríssimas, mas estão mergulhados no radicalismo fanático religioso.

A manutenção da vida é cara e cansativa. Esse mantra se repete de quando acordo até me deitar, ter pesadelos horríveis e outra vez e novamente. algumas esperança? Nenhuma! E isso não é ruim. Desejo que meus filhos encontrem ou construam seus propósitos nesse mundo, que não tem nada de divino ou pré-determinado por um deus onisciente, onipotente e onipresente... Desejo que vivam de modo mais leve, se possível. Não carregar essa carga traumática da religião pode tornar a jornada mais leve... eles poderão escolher o caminho, sem nossa imposição de certo ou errado.

Na página 82 do meu livro: "Cartas do Menino do Quarto para o mundo", na carta dedicada à minha família (esposa e filhos), escrevi: "[...] Lorenzo e Benjamin, sou humano e, portanto, falho; desejo ser o melhor pai do mundo para vocês, mas, as tentativas de ser, são de um pai possível e real!".

Infelizmente, o livro está impregnado de "crentês", referências bíblicas e espirituais (cristãs), mas era no que estava imerso até então. E quando escrevo "infelizmente", não é pelo que vivi e aprendi lá. Muito mais pela forma como se deu. Como tudo na minha vida - e Paula tem o mesmo perfil, de mergulhar, sermos intensos, não fazer pela metade ou superficialmente. Como escrevi em outro momento, o cristianismo evangélico brasileiro, nesses últimos anos, extremista-radical, como podemos verificar com a mistura perniciosa com a política, de caráter fascista.

Consola-me saber que nesses 20 anos de "menino de igreja", e como casal também, tivemos nossos embates e enfrentamentos justamente por sermos questionadores. Batemos de frente com "figurões", pastores e líderes e, portanto, fomos tachados de rebeldes, insubordinados. Mudamos de local - isso em Marília e aqui, ficamos em um e desde a pandemia, graças a deus, Maria, santo expedito, exu, iemanjá, espírito André Luís, todas as bruxas queimadas e vivas, Pachamama e todas as forças vitais do Universo, não somos mais de nenhum local ou estamos debaixo de cobertura espiritual de seu-ninguém. Que alívio!

Recomendo: "Pachamama", uma animação francesa,
sobre a invasão e genocídio dos povos andinos

Caso você que me lê até aqui, se em algum momento do passado quando eu fazia parte desse radicalismo e extremismo religioso, tenha te ofendido por algum ponto de vista ou posicionamento sobre qualquer área e tenha te magoado ou ferido, peço perdão pela minha ignorância.

O que escreverei sobre o ciclo da 5a década de minha vida? (estarei vivo? não terá acontecido antes meu velório com declamações dos poemas de Cecília Meireles? Leiam "Biografia", leiam todos que citei na minha Live com a Fernandinha Meireles em 17 de novembro de 2021).

Ano de 2031, se vivo, completarei 50 anos, meio século e só faltam oito anos para essa data. Neste ano, 2023, deixarei de ser professor universitário, que tenho sido desde 2008 e vou experimentar ser professor de adolescentes, na Sala de Recursos para Altas Habilidades/Superdotação (como PSS ainda pelo Estado do Paraná) e, talvez, seja convocado para uma vaga no concurso para professor de Educação Básica, pela Secretaria Municipal da Educação de Londrina, ser professor de crianças, do 1o ao 5o Ano do Ensino Fundamental. Desafios!

Sem expectativas, tentando administrar todas essas mudanças no mundo das ideias. Vamos ver como será na prática.

A manutenção da vida segue cara e cansativa. Amenizada com poesia. Ótimo ópio, ela, a poesia... refletir sobre a crueldade da existência com inteligência, doçura e incisões precisas.

Seguimos!

Feliz 42 anos para mim.

Obrigado.

De nada.